06 dezembro 2010

Os seminaristas

A pequena cidade de Joselina não contava com grandes atrações. Como todo pequeno povoado, em seu centro urbano constava uma praça. Ao redor desta, instituições de praxe: delegacia, prefeitura, agência dos correios, Banco do Brasil e a Igreja. Por um tempo, ali também funcionou um cinema, porém, não foi de grande sucesso. Alguns anos mais tarde vim a saber que passavam os filmes com muitos anos de atraso. Mas como eu era criança, não dava atenção a isso. Naquela época, achava que os filmes que passavam na sessão da tarde eram lançamentos recentes e que eram todos produzidos no Brasil. Não sabia o que era dublagem, acreditava realmente que os atores falavam português. Mas isto não se trata de cinema, e sim da vida de interior. Mais precisamente da cidade supracitada, onde a (única) maior diferenciação dos outros povoados era possuir um grande seminário. Não que fosse um grande diferencial, pois muitas outras cidades possuíam algo parecido. Mas, novamente, para minha fértil mente infantil, era algo que nos diferenciava dos outros. Esperava, inocentemente, que um daqueles astros que apareciam em minha televisão de seletor de canais, nos visitasse para conhecer o seminário, ou acompanhar a histórica primeira missa de um padre recém formado. Mas, novamente, isto não se trata de cinema, mas sim de uma pequena história sem importância.

Tratava-se do evento da cidade, algo esperado por todos os habitantes. Mais um domingo diferenciado, destacando-se na folhinha de calendário; aguardado por muitos desdenhosos sanguinários, ansiosos por humilhação humana: o momento de fraqueza do recém formado. Tratava-se de um rito, seguido há risca por muitas gerações canônicas. Não me atrevo a adentrar nos conflitos internos da instituição; deixo isto para outros interessados. Atrevo-me, sim, somente a abordar aquilo que vivi em que pude tirar minhas próprias conclusões.

Uma vez por ano havia a apresentação de mais um padre formado no seminário da cidade. Caso passasse nessa prova ígnea, seria transferido para outra paróquia. Nosso artigo de exportação. Não sei bem como começou esta tradição. Dizem que foi por acaso e que rendeu boatos e fofocas por toda a região. Dizem que até gerou uma notícia no jornal da capital. Alguns dizem que o caso rodou o mundo. Antigamente eu acreditaria, mas hoje, dificilmente.

O caso foi o seguinte: era década de 60, pelo que diz a maioria, mas a data correta se perde no boca a boca. Um novo padre seria apresentado a comunidade na missa de domingo. No fatídico dia, assumiu a nave da igreja e comandou o ritual com perfeição. Porém, quando recitava a Oratio Universalis, fez uma pequena pausa para um gole de água e neste intervalo, o jovem resolveu dar uma mirada em seu público (muitos dizem que foi para cometer o pecado do orgulho). Jó tinha razão em afirmar que é prudente aquele que não compactua com seus olhos. Ao erguer a cabeça ele a viu. Para melhor descrever o ocorrido utilizarei as palavras do próprio padre, que relatou anos depois:

"Uma jovem de rara beleza e vestida com uma magnificência real. Foi como se escamas me caíssem das pupilas. Tive a mesma sensação de um cego que recuperasse subitamente a visão. O público, tão resplandecente havia pouco, apagou-se de repente, as velas empalideceram sobre os candelabros em ouro como as estrelas pela manhã, e em toda igreja se fez uma completa escuridão. A encantadora criatura destacava-se contra aquele fundo de sombras como uma revelação angelical; parecia estar iluminada por ela mesma e proporcionar luz em vez de recebê-la.

Abaixei as pálpebras, decidido a não mais erguê-las para me subtrair à influência dos objetos externos; pois a distração me invadia cada vez mais e eu mal sabia o que fazia.

Um minuto depois reabri os olhos, pois, através de meus cílios, eu a via faiscante com as cores do prisma e numa penumbra purpúrea como quando se olha para o sol.

Ah! Como ela era bela - Os maiores pintores, quando perseguindo nos céus a beleza ideal, trouxeram para a terra o divino retrato da Madona, sequer se aproximaram daquela fabulosa realidade."

Não pretendo estender-me mais, já que foram utilizadas mais 3 páginas para descrevê-la. O fato é que, finda a missa, o novo padre sumiu-se com a bendita colocada na última fileira. Foi alvoroço total. Blasfêmia, diziam uns, apesar de nem saberem o real sentido da palavra.

Não sei de qual mente insana saiu a ideia de perpetuar tal acontecimento, mas nos anos seguintes, logo que um padre novo se apresentava para a primeira missa, tal teste era realizado, organizado pelo padre e em conluio com algumas beatas da população local. Os seminaristas não sabiam de tal prática. 
Uma voluptuosa senhora - trazida de outras cercanias, mediante pagamento - sentava-se na última fileira, mas de modo que quem estivesse na nave da igreja, a visse assim que mirasse o público. Não vestia-se forma vulgar, tampouco chamativa, mas com pequenos toques de mistério. E, sim, tinha que ser morena, algo raro naquela cidade de colonização germânica. Dela, se esperava um ato simples: uma olhada circunstancial, uma cruzada de pernas, um movimento da mão nos cabelos. 
Todos aguardavam ansiosos pela primeira olhada do novo padre. A partir de então, todos observariam o seu comportamento. Se fosse predestinado a ser um servo de Deus, conseguiria manter o controle e terminar a missa da mesma forma serena que começou. Caso tivesse algum desvio de conduta, ali se apresentaria e então, estaria fadado a ser desacreditado por seus pares. Muitos anos se passaram e a tradição tornou-se famosa. Tanto ao ponto de um seminarista a conhecer e tentar utilizar um artifício para trapacear. Pouco se sabe sobre o treinamento que ela recebia para conseguir atrair tanto a atenção do padre novato. Dizem alguns que bastava ser mulher, pois nós, homens somos seres fracos.

Certa vez, um novo padre teve uma "grande" ideia: utilizar óculos de grau diferente do seu, para não conseguir enxergar a tal dama. Porém, esqueceu-se de que teria de ler a bíblia durante a missa. Todos acharam muito estranho que o padre colocava os óculos para olhar para o público e tirava para ler. Em uma destas passagens, o padre se confundiu e tirou os óculos para mirar o público. Ledo engano. Viu a moça e perdeu-se em devaneios.

Dizem que tal teste começou a ser aplicado em vários lugares mundo afora. Procure, a próxima vez que for a uma missa, uma morena sedutora no último.

25 novembro 2010

Esculpido em carrara

Esculpido em carrara

Há trinta anos Nestor procurava no filho traços que apontassem qualquer semelhança consigo. Nas linhas do rosto reconhecia a doce genética materna, que, por sinal, no rapaz não caía bem, sendo que não havia nele qualquer outra característica que julgasse familiar. Nada no filho reconhecia como seu – idéia com a qual, na verdade, no todo não lhe desagradava, a não ser pelo inconveniente de ser chamado de pai.

Nestor tinha pele clara, cabelos e olhos castanhos. No rosto sobressaia-se o nariz, que em que pese não fosse grande, possuía linhas duras, o que, em conjunto com as sobrancelhas grossas, conferia-lhe um ar soturno. As mãos e os pés eram grandes, os ombros largos, as canelas finas e as pernas grossas. Era um homem de estatura mediana, pouco acima do peso para sua idade.

Marcelo tem olhos finos, e nariz pequeno. A pela é mais escura que a minha. O rapaz é muito alto, possui costas estreitas. Destoa muito do fenótipo da minha família. Certamente, não é meu filho. Pensava.

Acabrunhava-se, ainda, o suposto pai com o gênio do filho. Achava que nenhum atributo de personalidade havia sido herdado, tampouco adquirido ao longo dos dezenove anos de convívio familiar.

Para bem da verdade, por motivos que sequer compreendia, Nestor sempre desdenhou do filho.

Quando recebeu da esposa a notícia da gravidez não se comoveu. Ao escutar a frase Estou grávida, não sentiu nada de extraordinário. A impressão vivenciada foi similar à mais corriqueira das sensações, como se algo prosaico estivesse sendo dito, tal qual “precisamos fazer compras”, ou “a calha está novamente entupida”. Comovera-se, contudo, com as lágrimas nos olhos da mulher, razão pela qual acreditou que os sentimentos inerentes à paternidade chegariam ao seu tempo.

Na maternidade, ao ver o filho pela primeira vez, fora acometido de uma inexplicável náusea, dores estomacais e arrepios na espinha. Era nojo o que sentia. Com o passar dos anos foi dominando os inoportunos mal-estares, de forma que quando Marcelo completou cinco anos viu-se apto às praticas paternais, tais como os jogos de bola e pescarias mensais.

Entretanto, quando levava o filho à cama e o via adormecer, analisava a respiração da criança, o tremer de lábios, os pequenos gestos noturnos e sempre de asco era tomado.

Quando o filho completou dez anos resolveu procurar ajuda especializada. E após superficialmente transitar entre psicólogos e psiquiatras, que nada de concreto diziam, resolveu seguir o conselho obtido à porta do confessionário: Amar ao próximo como a si mesmo é dever de todos os homens na Terra, meu filho. Cumpra seus deveres de pai e reze dez pai- nossos e dez ave-marias.

As ave-marias e pai-nossos passaram a compor a rotina de Nestor que a cada dia certificava-se de que ainda não amava o filho. As orações diariamente eram feitas ao acordar, antes de dormir, e, ainda, em períodos alternados do dia quando se via pensando fixamente na hipótese de abondanar a esposa para nunca mais ver, ou mesmo ouvir, qualquer menção ao filho.

E durante anos o homem lutou com todas as forças contra o absoluto desdém sentido pelo filho, o qual jamais foi dominado.

Para Marcelo, jamais faltou o carinho materno e o auxílio material paternal. A indiferença com qual o filho foi tratado pelo pai ao longo da adolescência uniu mãe e filho e afastou Nestor da relação familiar.

A pertubação de Nestor com o passar dos anos se avolumou, sendo que durante o dia eram por ele revezados os sentimentos de culpa, desprezo e arrependimento por um dia ter se tornado pai.

Quando completou 49 anos, esposa e filho fizeram as malas. Não houveram despedidas. E longos anos de alívio se passaram. As ave-marias e pai-nossos, por precaução foram mantidos. Na conta da esposa Nestor depositava mensalmente metade do salário recebido como agente ferroviário.

Nestor sentia que a ausência do filho só lhe fizera bem. O homem recuperava sua humanidade. Era capaz de amar pessoas, realizar gentilezas, fazer amigos.

Aos 59 anos seus pensamentos voltaram a reincidir no filho. Pensava que o rapaz, agora com 29 anos, deveria ter acentuado a atroz dessemelhança.

Em uma noite o telefone de Nestor tocou e, antes de atender, pôde sentir um arrepio lhe correr a espinha, acompanhado de uma forte náusea. Alô, Nestor, escutou a voz da esposa, ontem Marcelo se tornou pai.

Aos 60 anos o homem tornara-se avô.

Nestor vislumbrou a possibilidade de se redimir. De amar ao Neto como não amara ao filho. Depois de muitos anos, dormiu e acordou sem rezar.

Feitas as malas, partiu ao encontro do filho. Após tocar a campainha pode ver Marcelo se aproximar, quando percebeu semelhanças físicas nunca antes vislumbradas: os cabelos, a barba fechada, o timbre de voz, o andar firme. Os braços estendidos ao filho não chegaram a lhe alcançar. Pode sentir um forte calor no peito acompanhado da perda da audição. A visão se fechou. O corpo desabou no chão, fazendo ranger todos os cômodos da casa.

Velho maldito. Ainda não posso amar meu filho.

24 novembro 2010

5º, IV.

5º, IV.
"É preto no branco".
Ou "Aqui a gente só se fode".

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23 novembro 2010

O Capp não cumpriu a promessa dele. Dois anos desde o último post já se passaram e nada ainda de "Minhas Férias".

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14 outubro 2008

Voltando à rede

Senhores estou retornando ao mundo virtual.
Muita calma nesta hora, pois tenho mais de 1200 e-mails não lidos...
Espero postar o "minhas férias" em breve (menos de dois anos, garanto...rs).
Abraços,

Até breve.

23 novembro 2005

Sina Nacional

I

Eu vim mostrar na praia as banhas flácidas
Num ato heróico, louco, impressionante,
Que o mar que vai banhar meu bojo túrgido
Parece feito de algo infectante.

O temor da sujidade
Consegui matar com argumento forte:
Orçamento pela metade --
Só restou-me vir pra cá tentar a sorte!

Praia surrada,
Maltratada,
Salve? Salvem-me

Dos rios de esgoto intenso verde-lívido!
Que nojo -- quem já viu nunca se esquece
Do refletido céu no lixo líquido
Que mesmo mar adentro inda aparece.

Ninguém se importa mais com a natureza?
Será tão triste a sina deste povo --
Bater-se por espaço na areia?

Praia lotada!
Se eu dormir quando acordar não tenho nada.

Um mês inteiro disto é doentio,
Onde está
meu fuzil?


II

Deitado finalmente em ponto esplêndido,
O mar que vejo é de corpos desnudos.
Vergonha de minha forma paquidérmica,
Se ao menos fosse eu jovem e marrudo

As garotas mais garridas
Encheriam minhas tardes de amores!
Que têm elas contra barrigas?
Não as têm também os meus competidores?

E olha aquela,
Que sarada,
Salve! Salvem-me

De outro camelô com espetinhos de
Camarão frito no ano passado!
E o outro tem produtos que a alfândega
Jamais soube que foram importados.

E se ergues às crianças a voz forte,
Verás que o pai folgado vem p'ra luta:
Pedir educação resulta em morte!

Mas que roubada!
Chovendo, lá na quitinete se faz nada!

E na semana o tédio é doentio,
Vou voltar
Mais senil.

19 novembro 2005

"Minhas Férias"

Minhas férias foram boas e ruins. A mamãe e o papai foram viajar e me deixaram com o tio Milto no sítio dele. É gostoso porque tem o Bingo, o cachorro dele, tem um laguinho que tem peixe, e tem árvores grandonas pra subir. Até construí uma cabana emcima de uma delas quando era mais pequeno. O ruim é que quando não tem visita, o sítio fica triste. Só meu tio mora ali.
Agora que fiz 10 anos, meu tio disse que estava na hora de eu aprender brincadeiras novas e resolveu me ensinar. Eu gostava mais de subir na cabana, meu pai me ajudava e a gente dava um monte de risada lá dentro, porque ele batia a cabeça no teto. Sempre ouvi dizer que crescer era difícil, acho que agora comecei a achar chato também. Não gostei das brincadeiras do tio, mas não disse por que sou tímido e meus pais não estavam ali. Eu olhava pra cabana, queria subir lá, mas o tio não me ajudava. Bobo.
Ele quiz que agente ficasse pelado, que eu sentase no colo dele, dava uns berros estranhos, me asustou muito. Depois pegava no meu corpo, mas não como o papai, a mamãe ou a vovó fazem, apertava. Não parece nem com jogo de futebol, nem com nenhuma outra brincadeira que eu conheço. E ele também pedia pra eu copiar o que ele fazia comigo no corpo dele. Não gostava não. Na verdade tinha um pouco de nojo, parecido com quando eu piso em cocô de cavalo, lá do sítio também. Eu queria falar o nome da brincadeira pra senhora, mas ele não me dise como chama.
O bom é que acabava rápido e não sei por que, ele sempre me dava doce de goiaba depois, o meu preferido. Então eu pensava no doce de goiaba, brincava com ele, e comia o doce de goiaba. Ele queria brincar primeiro uma vez por dia, depois duas e até três, mas o resto do tempo eu ia no laguinho, brincava com o Bingo e tentei fazer um caminhão de madeira que eu achava solta no chão. Isso era legal. Mas não deu tempo de acabar o caminhão e eu também não quero voltar pra lá pra acabar ele. Achei muito chato mesmo a brincadeira do tio.
Até contei pro papai e pra mamãe quando chegamos em casa depois que eles pasaram lá pra me pegar, mas eles me bateram muito e diseram que eu tava inventando a brincadeira do tio. Diseram que iam me levar no médico da cabeça, e me puseram de castigo. Eu ouvi eles conversando que é muito comum na minha idade que a minha imaginação brinque comigo, mas pelo que entendi, é melhor nunca mais voltar a falar no asunto. Eles não gostaram nadinha mesmo. Mas eu não quero voltar pro sítio não...Esas foram minhas férias.
A senhora acredita?

18 novembro 2005

Férias no Caribe


Desde que eu tinha uns 9, 10 anos de idade, queria passar férias no Caribe. Isso aconteceu por causa de um colega do meu colégio, filho de pais relativamente “ricos”, que tinha ido e voltou contando para todos das maravilhas do lugar, além das fotografias.
Tudo aquilo me deu uma vontade enorme de, um dia, passar férias lá. Mas, ao mesmo tempo, tinha plena consciência de que não tinha condições financeiras de pagar uma viagem para lá.
Cheguei à conclusão de que, se queria ir para este lugar, deveria ir por minhas próprias forças, ou seja, estudando para conseguir trabalhar bem e pagar uma viagem ao Caribe.
Foi assim que mergulhei nos livros e passei no vestibular para medicina da Ufrgs, em 3.º lugar. Minha formatura, toda aquela festa, já empregado e recebendo convites para trabalhar em consultórios, tinha me tornado um ortopedista de destaque em minha turma. Foi quando percebi que meu sonho poderia estar chegando perto de ser realizado.
Dois anos de trabalho árduo, sem gastar quase nada, e consegui ter todo o dinheiro para viajar, mas uma sobra para fazer alguns programas, como mergulho e passeios.
Reservas feitas, passagens, hotel, tudo certo. Embarquei num vôo Porto Alegre – São Paulo e depois de São Paulo – Caribe.
Primeiros dias no Caribe, uma beleza, sol, mar claríssimo, paisagens paradisíacas, mulheres bonitas, bebidas, enfim, tudo de bom que um paraíso tropical oferece.
No terceiro dia, ligo o rádio no quarto do hotel e escuto um locutor local falando em espanhol: “A todas las personas de la región, hay un huracán llegando a la ciudad en media hora. Todos deben recojerse en lugar seguro”.
No mesmo instante, dei um pulo da cama e comecei a guardar todos os meus pertences e correr para o local mais seguro que pudesse. Pensei “PQP, venho passar minhas sonhadas férias e vem uma porra de um furacão pra melar tudo”.
Desci as escadas do hotel, todo mundo em pânico, correndo, gritando. Ao chegar no saguão, o gerente do hotel direcionava todas as pessoas para um abrigo subterrâneo no subsolo.
Antes de descer, fui até a frente do hotel e olhei para o céu. Olhando para o leste, céu azul, para o oeste, céu preto e aquele cone devastando tudo o que vinha pela frente. Corri para o abrigo, rezando para tudo o que é santo.
Dentro do abrigo, começamos a escutar o barulho da ventania, vidros quebrando, barulhos de curto-circuito, pessoas gritando por ajuda. Horas que custaram a passar.
Após a passagem do algoz das minhas férias, saímos do abrigo e o quadro era aterrorizante: prédios destruídos, a estrutura do hotel inteira, mas vidros, janelas, restaurante, tudo destruído.
Ao sair para a rua, vi ambulâncias, carros da polícia, correndo desordenadamente para acudir a maioria de pessoas possível, sem muito sucesso, pois o alarme foi dado pelas autoridades muito em cima da hora. Pessoas mortas pelas ruas, outras agonizando. Lembrei-me do meu juramento, mera formalidade para receber o diploma mas que, naquele momento, veio à minha cabeça como outro furacão.
Decidi ir até as autoridades e me oferecer para ajudar, pois sou médico e o quadro não era muito favorável.
Saí, acompanhado de José, um brasileiro que trabalhava como motorista de ambulância, a procura de vítimas. Chegamos em um cruzamento de duas ruas, uma pessoa caída. Descemos para ver se necessitava de ajuda e fiquei estupefato: uma sinaleira caiu sobre a cabeça dela, dividindo seu crânio. José, na hora, falou: “-Vamos, essa não poderemos ajudar”.
Fiquei impressionado com a frieza daquele motorista, mas obedeci. Seguimos viagem. Andando mais uns dois quarteirões, outra pessoa caída, mas escutávamos seus gemidos. “Está vivo!!” pensei.
Esta pessoa estava caída perto de um fio de alta tensão. O fio caiu e eletrocutou a pessoa que, por sorte, foi arremessada a uns 3 metros de distância do cabo. Suas pernas e braços pretos, torrados pela descarga elétrica, a pessoa agonizando, pedindo por ajuda.
Levamos o doente para uma grande enfermaria improvisada, no centro da cidade. Após examinar um pouco melhor o paciente, fui conversar com outros médicos. Numa rápida conversa com eles, diante do estado de seus braços e pernas, totalmente carbonizados pelo choque, optamos por amputar ambas as pernas e o braço esquerdo. O braço direito anda havia uma chance, pois havia circulação sangüínea.
Voltei pro Brasil num avião da FAB, pensando: Será que eu realmente ajudei aquele homem? Não seria melhor ter deixado ele morrer ali?

17 novembro 2005

O Espelho Circular

Durante minhas férias, programei uma viagem de estudo às terras do oriente, onde tive a oportunidade (o prazer) de hospedar-me em tal casa antiga, que só o cheiro do local já trazia o sentimento de milhares de anos de história. Não vou saber precisar bem a cidade, mas como muitas, era cercada por tal desertificação que mantinha a comunidade unida na sua luta contra sua própria natureza. Um povo hospitaleiro, o qual conseguiu tranqüilizar meu medo de enfrentar tal civilização que tem uma face tão dura, marcada por tantos fatos milenares. Arriscando meu hebraico enfadonho, consegui me comunicar e com o tempo pude produzir diálogos interessantes e instrutivos com os quais pude elaborar um suposto guia de viagem sobre aquela região. Não estive só em minha ilíada em língua estranha. Um americano, Richard Adams, que hospedava-se em quarto vizinho, e que também viajava com os mesmo propósitos que eu, teve a mesma dificuldade, para se fazer entender. No fim do corredor, encontrava-se Lisaveta Ivanovna, russa, porém versada em diversas línguas, inclusive na hebraica. Lisaveta foi muitas vezes nossa salvação.

Várias vezes sentávamos nós três na sacada, eu apresentando meu melhor inglês macarrônico que pude aprender, comentávamos sobre a vastidão das culturas existentes e nossa petulância perante milhares de anos que nos cercavam em querer colocar um mundo em poucas páginas. Especulávamos também a dificuldade das pessoas diferenciarem indivíduos de raças diferentes. Adams, dizia que todos os japoneses, além de serem uns filhos de umas putas, eram todos feitos da mesma merda. Certa vez, a questão que presenciamos no local também foi abordada, pois para nós todos daquela região eram parecidos. Adams afirmava que Abraão, dono do lugar onde estávamos hospedados, tinha trepado com todas as mulheres da cidade e por isso eram todas as crianças parecidas. Talvez envergonhada pelo vocabulário de Adams, Lisaveta retirou-se, alegando cansaço. Retorna a meus ouvidos as simples, mas eficientes palavras de Adams, o qual costumava a se referir a Deus como "the biggest son of a bitch", o qual era culpado por toda essa merda que estava ali. Contradizia-se, já que alegava ser ateu. Muito influenciável que sou, comecei a usar muito de suas gírias, em especial "son of a bitch" e "fuck". Muitas vezes tive que me policiar em frente a Abraão, evitando vocabulário que de alguma forma pudesse ofendê-lo (mesmo que ele não soubesse o inglês, poderia identificar tais palavras). O americano não se constrangia, e pude notar que Abraão não o suportava, mas o tolerava pelo bom dinheiro que pagava pelo quarto. A arrogância de Adams, somente tolerada por mim (não só pelo fato de eu ser muito paciente, mas por me sensibilizar com tais personas que não tem nada além de sua própria altivez) contribuiu para me aproximar de Lisaveta, por quem me enamorei desde o primeiro momento.

Adams não se demorou para ir embora, alegando precisar concluir sua pesquisa até o fim do ano, e muitos lugares ainda esperavam por sua visita. Deixou-me seu endereço em New York o qual nunca visitei e, se não me engano, já não tenho mais. Lisaveta também não se demorou, iria voltar à sua terra para terminar seus estudos, porém, prometemo-nos manter contato. Conquistado pelo clima da região e pelo ambiente amigável, decidi prolongar minha estadia por lá. Minha amizade com Abraão intensificou-se com a partida de Adams e Lisaveta. Meu medo de ser um estrangeiro solitário fez-me agarrar no primeiro galho do penhasco que visse pela frente. Abraão, com muita simpatia aceitou ser esse suporte. Minhas conversas na sacada com Adams e Lisaveta, foram substituídas por longas histórias contadas por Abraão. Na minha gula por traduzir tudo que ele dizia, não me coordenava em falar; apenas ouvia. Isso conquistou a simpatia de Abraão, homem de largos gestos, comunicativo e, como aprendi, que não gostava de ser interrompido.

Certa noite ele se enveredou na história de um espelho de forma circular, obra de Solimã, filho de Davi - seja salvação para ambos! -, cujo preço era muito elevado, pois era feito de diversos metais e aquele que olhasse em seu cristal via o rosto de seus pais e de seus filhos, desde o primeiro até os que ouvirão a Trombeta. Imediatamente calou-se, envergonhado, parecia ter falado mais do que devia. Tentei tranqüilizá-lo com meu parco hebraico, jurando-lhe de que tal revelação (a qual quebro agora por motivos que todos entenderão) não constaria em nenhum relato meu sobre esta viagem. Sensibilizado com tal juramento, ele prometeu-me mostrar um tesouro que escondia, e só o faria pois notava o meu esforço por agradar-lhe. Levou-me até a sala de estar da casa e pediu-me que o esperasse ali. Ele sumiu por uma outra porta e por alguns instantes pude ouvir o som de grandes móveis sendo arrastados. Logo ele reaparece trazendo nas mãos um largo objeto enrolado em um pano verde. Pediu-me que jurasse mais uma vez manter isso fora de meu relato, o que o fiz sumariamente. Tirou o objeto de dentro dos panos e o depositou sobre a mesa. À primeira vista não passava de um espelho comum do qual não me preocuparia em gastar mais que 5 dólares para tê-lo.

- Este, meu amigo, é o espelho de que lhe falo; o espelho de Solimã, filho de Davi, sobre o qual lhe direi a história. Nos primeiros dias, havia no reino dos andaluzes uma cidade na qual residiam seus reis. Nessa cidade existia um forte castelo, cuja porta deveria manter-se fechada. Cada vez que um rei herdava o trono deveria colocar, com suas próprias mãos, uma fechadura nova na porta. Nela somaram-se 24 fechaduras, até subir no trono um homem diabólico que não pertencia à casa real e que ordenou que as portas fossem abertas. Muitos tentaram persuadi-lo de tal empreitada, mas sem sucesso. Com sua mão direita (que arderá para sempre) abriu a porta do castelo e inspecionou seus aposentos, dentro dos quais muitos tesouros foram encontrados, inclusive este o qual lhe mostro agora. Porém na parede final de uma longa sala encontrou a inscrição que dizia "Se alguma mão abrir a porta deste castelo, os guerreiros de carne que se parecem aos guerreiros de metal da entrada tomarão o reino". Antes do final desse ano, Táric apoderou-se dessa fortaleza, derrotou esse rei, vendeu suas mulheres e seus filhos e assolou suas terras. Assim foram se expandindo os árabes pelo reino da Andaluzia. Talvez a história não lhe revele muito sobre o espelho, mas a forma como foi encontrado me diz muito. E além disso, é tudo que sei.

Mantendo interesse com o qual ouvia todas suas histórias, o encarava sem surpresas.

- Teu rosto incrédulo parece desafiar-me, o mesmo ocorreu com um outro viajante que o encarou, e te digo: se duvidas, experimente-o.

Assim o fiz e tudo me pareceu a mais límpida verdade. Vi o primeiro Adão, percorri todos meus antepassados que um dia ocuparam os Pirineus para depois se deslocarem para a região central da África em busca de diamantes; vi meus avós de séculos passados em suas cruzadas inúteis; vi desbravadores em um novo continente selvagem e então vi eu, e somente eu.

Falei o corrido para Abraão e suas notícias não eram agradáveis. O espelho não mente jamais e isso significava que eu era último de minha linhagem. Muito poderia se deduzir disto, talvez até uma morte prematura me aguardasse na próxima viagem. Assombrado pelo meu futuro incerto parti em direção à Rússia, deixando a terra hospitaleira de Abraão, o qual me fez jurar mais uma vez manter nosso segredo.

Chegando em São Petersburgo procurei por Lisaveta e a pedi em casamento, eu não tinha mais nada a perder; e não perdi. Em pouco tempo veio a notícia que me tirou um grande peso da alma: Lisaveta estava grávida. O espelho era falso? Seria Abraão um charlatão tentando aproveitar-se da minha credulidade conquistada em longas noites de histórias? Nada mais importava, a linhagem Forlon continuaria.

Sete anos depois, vendo meu filho correr pelo gramado de minha casa lembro de Adams e balbucio:

- Mas esse filho da puta é a cara de Abraão.

05 novembro 2005

5º Tema

Após um longo tempo de ociosidade, as atividades serão retomadas. A bola da vez pertence a Eduardo Capp que sugeriu o tema “Minhas Férias”. Apesar de estarmos sofrendo alguns desfalques, creio que os interessados podem continuar escrevendo, pois devido à minha falta do que fazer, irei incomodar muita gente ainda com esse projeto. Dado recado, abaixo seguem os dados do 5º tema.

Tema: Minhas Férias
Autor: Eduardo Capp
Entrega: 18 de novembro de 2005

Abraço a todos

28 setembro 2005

Nas Entranhas

O coração batia acelerado. A capa plastificada, o número catalográfico. Pequenas orelhas de burro, sucesso eram o que significavam. Era lida, muitas vezes, remexida. E a cada nova cópia que dela se produzia, por oito mãos passava. Mas guardava, ainda assim, seu perfume.

Adquirira, é verdade, algum cheiro de mofo. Ocorre que a biblioteca tivera, há dois anos, problemas de infiltração, o que acabou prejudicando a aparência do material, mas as folhas eram aquelas, nelas havia tocado, guardado as impressões do lugar, nas entranhas do papel as percepções daqueles dias. Aqueles dias. Nunca mais esqueceria.

Foi assim: Do outro lado da linha telefônica a voz grave-fina do rapaz. A velha professora de português atendera, sorte a dele, ela não andava para telefonemas nos últimos tempos. Não sabia porque, não queria, mas acabou atendendo por descuido, por reflexo, talvez.

Sim?

Olá, tudo bem? O professor Barsan me passou o número da senhorita... Bom, eu precisava da revisão gramatical do meu trabalho. A senhorita teria como fazer?

Para quando?

Uma semana.

Qual é o assunto?

Oscilação Média Limitada.

Sim menino. Mas, é física, geografia, matemática?

Ah, sim, matemática.

Muitos termos técnicos?

Bastante.

Então tens que participar da correção. Posso amanha, às quinze horas e trinta e três minutos.

Claro! Muito Obrigado.

Até amanhã.

Bateu o telefone. Ele não gostou da voz, da rispidez, da correção a dois. Mas não tinha tempo, nem opção.

Ela não queria. Mas devia a Barsan. Faria.

Noutro dia preparou o chá e o aguardou. Menino magro, de língua presa, pouco expressivo, tímido, naturalmente incomodado. A correção durou três dias. O material ficou muito bom. Ele providenciou a impressão do material e retornou com a encadernação, como ela determinara, para que verificasse a necessidade de errata. Sentarem-se juntos, ela releu a tese de 247 laudas, cuidadosamente. Não constatou nada, o trabalho estava impecável. Pediu para que ele repetisse o procedimento. Enquanto isso ela ficou o observando. O fez por duas horas e vinte e sete minutos ininterruptos. Reparou nos dedos magros, na delicadeza dos movimentos. Na respiração. Na tosse seca. Na vida que as letras ganhavam em seus olhos. Na evidente satisfação ao ler a própria obra. Nas variações da expressão facial, nos sorrisos, discretos, de canto. Hipnotizada por cada gesto.

Ele pediu se poderia fumar. Ela não fez nenhuma objeção. Pediu fogo, estendeu-lhe. Fumando, continuou lendo o material. Acendeu mais um cigarro. Ele era cuidadoso, lento.

Perfeito, ele disse. Disse a ela, disse a si mesmo. Disse satisfeito, com o tom de voz do regozijo. Perfeito, ele poderia voltar para seu país, nunca mais veria os olhos cansados daquela mulher, não freqüentaria mais as bibliotecas daquela cidade, não continuaria naquela pensão, não imploraria mais por uma audiência com Barsan.

Pagou pelo serviço, agradeceu, foi embora.

Ela fechou a porta, voltou-se para a cadeira em que ele esteve sentado nos últimos dias. Sentiu sua falta. Esperou dois dias. Estava nervosa, mas havia decidido: ligaria, o convidaria para tomar um café. Sim, faria. Suspirou, discou os números, a ordem deles parecia enorme. Cada sinal de chamada durava uma eternidade. Os sinais se repetiram, doze vezes, sem retorno.

Tentou por trinta dias.

Ele partira da cidade.

Procurou por Barsan. O rapaz havia retornado as origens, informou-lhe. O trabalho foi laureado, acrescentou, ele recebera propostas de doutorado, sim, mais de uma. Não sabia por qual delas ele havia optado, é verdade. Enfim, Barsan não sabia seu paradeiro.

Mas haveriam notícias. Não houveram.

Só o que tinha era o original resguardado na biblioteca universitária. Ela já havia providenciado a cópia. Mas nela não podia reconstituir o momento derradeiro. As tragadas do cigarro, o toque dos dedos. Precisava do original, cheirá-lo, cuidá-lo.

Segurou forte, saiu correndo.

27 setembro 2005

Neste post, o link para a verdade. Acesse por sua conta e risco.

Em um canto mais reservado da Sala dos Professores, as duas mulheres elegantemente trajadas discutiam em sussurros, mas mesmo assim acaloradamente:

-- Estou te dizendo, Krissy! A autora da tese roubada, a tal Jennifer Woodworth, nunca existiu!!

-- Como não? Como não?! Meg, logo que fui contratada eu conheci a garota que dividiu o quarto com ela por quase dois anos! Só eu sei o que foi a garota contando como foi difícil agüentar todas as neuroses da Woodworth, encobrir-lhe os sumiços, aturar os papeizinhos que ela colava na parede com aquele sem-fim de fórmulas... E a mãe dela? Uma russa, ucraniana ou sei lá: só sei que, depois da defesa da tese -- logo quando a Jennifer desapareceu -- ela ligava pra essa pobre garota, tipo, de 12 em 12 horas, fazendo toda sorte de pergunta! E agora vem você com essa história, depois de tanto tempo?

-- Vai por mim, Krissy. O boato no Laboratório de Arqueologia é que aquele pesquisador gay que trabalha lá ... Irvine, acho que esse é o nome dele... sabia de tudo, e estava envolvido até o osso!

-- Irvine? Kenny Irvine??

-- Ele mesmo!! E a mãe da Woodworth também. E pior... tem um muçulmano envolvido... Acho que eles são todos terroristas!

-- Que horror, Meg! De onde você está tirando isso?

-- Da internet, de onde mais?? Espera, eu tenho o endereço aqui: ainda está no papelzinho que a Sally me deu. Toma, fica pra você. Dizem que está tudo lá em detalhes!!

-- Dizem? Mas -- você ainda não leu?

-- Eu não, querida. O texto é enorme! Além do mais, nem bem a Sally chegou dizendo que tinha devorado cada linha, ela sumiu. Faz dois dias que não vem. Parece que a Agência está envolvida...

-- Pois eu vou ler assim que sair da aula!

-- Boa sorte, então, Krissy. Caso você também desapareça, foi um prazer tê-la conhecido, viu?, disse a espevitada professora de Álgebra do Departamento de Mátemática da Universidade de Indiana, enquanto abria a porta de vidro da Sala dos Professores e a passos rápidos e curtos dirigia-se para sua sala.

Assim apressada, ela não pôde ver a mudança na expressão facial de sua colega, a Orientadora Pedagógica conhecida na instituição como "Krissy" -- Kristina Grinsberg-Schatzkin, segundo os registros: as linhas suaves e joviais de seu rosto assumiram um aspecto absolutamente frio e impessoal, calculista, até, como o de uma assassina treinada por anos a fio.

Muito menos pôde Meg ouvi-la dizer no celular sacado com movimentos firmes e precisos.

-- Jones está limpa. Ainda não leu. Sim, consegui o novo endereço -- disse "Krissy", desembrulhando o papelote que a professora lhe deu -- http://www.geocities.com/hombre_lagarto/cdpd/conto04.html?200523#BEA. Contate nosso pessoal no Yahoo Geocities. Algo precisa ser feito imediatamente. Já estão citando Irvine por nome.

Ouvindo calada por ainda alguns segundos, "Krissy" logo em seguida desligou o telefone e, olhando em volta para certificar-se de que ninguém percebeu a operação, reassumiu seu ar alegre e faceiro.

Saltitante, foi chegando-se a outro grupo de professores, perguntando festiva sobre o que eles tão animadamente conversavam...

26 setembro 2005

Cheiro de açougue

Quem está livre de cometer uma loucura por amor? Eu comprovei que eu estava dentro desse seleto grupo de pessoas, que age impulsivamente. Não só por amor, mas por qualquer outro motivo que o valha. Mas não fui sempre assim; muito pelo contrário. Sempre fui uma moça recatada, obediente e temente. Colocava a vontade alheia acima da minha, mesmo que isso fosse contra meus próprios anseios. Amélia morreria de inveja. Foi quando conheci o Cláudio, há pouco mais de dois anos atrás, próximo de meu aniversário de 40 anos. Eu estava no supermercado, e chorava copiosamente próximo ao balcão de congelados. Meu marido havia esquecido meu aniversário, talvez pela 10 ª vez consecutiva. Foram necessários 10 anos para eu poder me abrir e expor meus sentimentos, mesmo que fosse à frente de quilos de carnes mortas e geladas, o que não era muito diferente da nossa vida amorosa. Após as primeiras lágrimas escorrerem, Cláudio apareceu, do outro lado do balcão. Primeiro tentou disfarçar, fazendo que não tinha visto que eu havia chorado e tentava esconder as lágrimas. Depois foi muito atencioso, ofereceu-me um copo de água com açúcar, convidou-me para sentar. Não quis ouvir meus problemas, apenas se preocupou comigo, em me fazer sentir bem. Fiquei mais aliviada, eu só precisava daquele pouco de atenção que há tanto tempo haviam privado de mim. Em seguida ele me levou para trás do balcão, e ali trepamos como dois animais no cio.

Inconscientemente, desse dia em diante, comecei a me arrumar melhor para fazer compras. Foi assim que conheci o João, o padeiro; Rogério, o quitandeiro e Alberto o gerente. Foi o Alberto que me levou à essas casas de swing, onde pude ampliar minha rede de amizades. Reencontrei o Cláudio, quem havia me aberto os olhos para esse novo e admirável mundo. Começamos a nos encontrar mais vezes, às vezes atrás do balcão do açougue, às vezes em minha casa quando meu marido saía. Embora tendo conforto do lar e o perigo de meu marido retornar, eu preferia o açougue. Além de ficar mais exposta, eu gostava de sentir o cheiro das carnes, misturada com o cheiro do suor de Cláudio. Fiquei condicionada a isso, e era capaz de ter um orgasmo só de passar na frente de um açougue. Ele era um rapaz bem mais novo que eu; tinha idade para ser meu filho. Cursava a faculdade de matemática na federal, e estava próximo de se formar. Seu trabalho de conclusão versava sobre Oscilação Média Limitada, ou algo parecido. Lembro que isso tomou boa parte de nosso tempo, pois ele estava realmente preocupado. Várias vezes retomava esse assunto, até no meio de algumas fodas.
Sua maior preocupação era quanto a obra sobre a qual precisaria pesquisar. Necessitava do trabalho de Jennifer Woodsworth, que se encontrava no departamento de matemática da universidade. Porém, ele não queria ir lá, pois teve um desentendimento com um dos funcionários. Pediu-me que fizesse esse favor, ele me levaria no caminhão do supermercado e me esperaria na porta enquanto eu pegava a obra. Entrei no departamento, e pedi o tal trabalho. Peguei-o e li como se entendesse do assunto, então precisava dar um jeito de ficar sozinha com ele. Perguntei ao responsável se tinha como pegar emprestado, ele pediu que lhe desse licença, que perguntaria ao seu superior, pois era novo no setor e não conhecia as regras muito bem. Perfeito, assim que ele passou pela porta, enfiei o trabalho dentro do casaco e corri para a rua, onde Cláudio me esperava dentro do caminhão.

- Ande, rápido, ligue o motor e vamos embora!
- Tudo bem, mas por que a pressa?
- Logo eles vão dar falta de mim e do trabalho.
- Sim, mas tu não pediu emprestado uma cópia?
- Não, eu roubei o trabalho original. Não era isso?

Cláudio freou o carro bruscamente.

- Como assim, sua anta? Era só para pegar uma cópia, eles vão saber que eu fui o responsável, pois há meses pesquiso esse trabalho.

Toda aquela amabilidade de Cláudio transformou-se em raiva e em agressão. Com socos e tapas ele me tirou de dentro do caminhão e me jogou na rua, não sem antes arrancar o trabalho de mim.Tudo acabou. Voltei para o meu insosso e frio marido como se nada tivesse acontecido. Mas continuo a ter orgasmos quando passa em frente aos açougues.

25 setembro 2005

2 + 2 = 5

No final das contas, tudo faz sentido, caro porta-voz, querido tenente Jerry Minger.
Veja:

1. Estar escrevendo este bilhete, estupefata pela sua mente assustadoramente rasa = 78
2. Para explicar rapidamente que algumas várias vezes a óbvia soma de 2 com 2 é 5 = 78
3. Faz sentido com a volta à cena do crime, não com a sua evidente insolubilidade = 78
4. Felizmente pra mim é de pessoas pouco argutas como você que o mundo está cheio = 78
5. Incapazes de ver o que supostamente se oculta, só enxergam o que salta à vista = 78
6. Oscilação Média Limitada (BMO)*, Espaços de Hardy e Multiplicadores Primitivos = 78

7+8 = 15
1+5 = 6

Aguarde ansiosamente pelos dias que somam 6. Em um deles conhecerá, respaldado por uma nova arma nuclear, aquele a quem prestará contas de cada minuto restante de sua vida.
A fórmula esteve o tempo todo ali. Admito, não com o mesmo objetivo. Entretanto, aparentemente, seu poderoso – mas deveras ingênuo - Deus pensou que a raça que tão bem criou a enxergaria antes de mim. Engano.
Quem assina? O mesmo nome que usava enquanto estive por aí: Lauren Morris Silver.

13 setembro 2005

4º Tema

Terminada a aventura africana em terras tupiniquins, abrem-se os trabalhos para a nova apresentação para o próximo tema do projeto do Círculo do Poder. Os milhares de fãs não se agüentavam mais de impaciência em saber sobre qual tema estes 9 malditos iriam abordar. Então, silenciem todos e abram espaço para o próximo tema, sugerido por Luís Lagarto.
Mulher misteriosa rouba dissertação de 1997

Segunda, 15 de agosto de 2005
17h50 (horário da Costa Leste)

Nem a polícia nem o Departamento de Matemática da Universidade de Indiana (IU) foram capazes até o momento de entender porque alguém fugiu com uma dissertação de doutorado em matemática do ano de 1997.

"No final das contas, não faz sentido", disse o porta-voz da polícia da IU Tenente Jerry Minger. A polícia disse que uma mulher, descrita como aparentando entre 40 e 50 anos de idade, visitou o departamento de matemática recentemente e pediu para ver a dissertação de Jennifer Woodsworth, de 1997, sobre "Oscilação Média Limitada (BMO)*, Espaços de Hardy e Multiplicadores Primitivos".

Um funcionário do departamento levou a mulher a uma sala onde são mantidas as dissertações e saiu para verificar com o responsável pelo departamento quando ela perguntou se poderia emprestar o documento por alguns dias. Quando retornou, a mulher e a dissertação tinham desaparecido.

O funcionário viu a mulher atravessar a rua correndo e saltar para o banco de passageiros de um caminhão estacionado, que então acelerou e partiu.

David Hoff, chefe do departamento, disse que o roubo foi intrigante porque cópias das dissertações são liberadas para empréstimo na biblioteca da IU. Minger disse que essa foi a única vez em que alguém roubou uma dissertação, pelo que se lembra. Tentativas de contatar Woodworth, a autora, foram infrutíferas.

Segundo Hoff, os funcionários da IU estão divididos quanto aos possíveis motivos para o roubo. "Foi muito estranho, e estamos todos tentando achar alguma explicação", disse ele.
* BMO = Bounded Mean Oscillation
Os fãs ainda terão de esperar até o dia 25 de setembro para conferirem os textos abordando o tema acima.

28 agosto 2005

Tiço

Se eu conheci o Tiço?!
Claro!
Sujeito maneiro.
Falava esquisito, quase nunca entendia um ovo do que ele dizia.
Sujeito famoso, peguei duas meninas que queriam conhecer ele...hehehe.
O Tiço é um bom sujeito, uma vez me deu um pedaço de um bolo que deram pra ele em uma reunião com uns bacanas.
Quando eu souber escrever melhor vou mandar uma carta pra ele.
Pra contá que a Marcinha teve um Tiçinho hehehe
Bem, ela diz que é dele... com a Marcinha nunca se sabe....heheheh
Ser brasileiro pobre em país de gringo dá fama, mulher e viagem de avião.
Ele disse que no início foi difícil, mas que agora todo mundo dizia que queria o bem dele, que não ia mais faltar grana, nem nada.
Um dia sigo o conselho dele.
Chegar ninguém sabe de onde, falando português em terra de gringo.
Se bobear, volto de avião de bacana cheio de dinheiro...hehehe

27 agosto 2005

Sofrimento da carne alheia

Agora penso nesse mundo como um pequeno pedaço de terra a ser explorado continuamente até exaustão; dele ou minha. Quem vencerá, ainda não tenho as palavras para responder, mas estou procurando um modo de solucionar tal questão.

Sempre sonhei em ser famoso, nem que por 15 minutos fosse. Decidi que queria filmar um desastre, mas é difícil prever onde eles acontecem. Resolvi ocasionar o meu próprio, quis contar com a ajuda de meu irmão, mas ele foi contra. Apenas se acalmou quando disse que ninguém sairia ferido. Preparei um artefato explosivo e coloquei em uma mochila. Passei-me por turista e entrei em um ônibus vazio, onde fingi esquecer minha mochila. A explosão deveria ocorrer exatamente 30 segundos depois que eu desembarcasse, longe de qualquer pessoa, sem machucar ninguém e que eu pudesse filmar. Porém, um erro de cálculo fez com que ela explodisse dois dias depois, com intensidade maior do que esperada, exatamente no momento em que o ônibus estava em um grande engarrafamento no centro da cidade. A explosão ocasionou um efeito dominó, explodindo vários carros à sua volta, inclusive aquele onde se encontravam meus pais e meu irmão.

Durante um mês perambulei pelas ruas em estado de choque. Não respondia a nada nem a ninguém. Policiais me procuraram, e então resolvi assumir a identidade de meu irmão; não foi difícil, pois éramos gêmeos. Acho que foi uma falha em minha consciência que me forçou a fazer isso. Em pouco tempo começaram a suspeitar de mim. Então, em vez de famoso, decidi ser um anônimo. E o melhor lugar para fazer isso é outro país. Clandestinamente embarquei em um navio com destino ignorado. Viajei muito, perdendo a noção do tempo e de muitas outras coisas. Descobriram-me no meio da viagem e trataram de fazer eu pagar pela viagem através de muita humilhação. Abandonaram-me no primeiro porto que pararam, numa terra longínqua e desconhecida.

Minha identidade e a do meu irmão permaneceram anônimas. Permaneci vagando entres lugares completamente estranhos a mim, em meio das pessoas mais diferentes já vistas. Meu preço ainda não havia sido pago ainda, pois a humilhação seguia cada vez mais forte. Eu percebi que aquilo era necessário, fazia parte da exploração; o sofrimento da carne pelo pecados cometidos. Afundei-me onde mais poderia permanecer mais assustado ainda: o fundo de minha alma.
Então, o sofrimento final veio nos meus sonhos, onde vi que o causador da explosão havia morrido nela própria e aqui estava eu, no meio do inferno, pagando pelos pecados de meu irmão gêmeo.

25 agosto 2005

Um abraço

Que sentido há quando se perde as esperanças? Não existe mais "pai", não existe mais "mãe", não existe mais "casa" e o irmão que me restava partiu para terras distantes. O que tenho, agora, é um resto de vida que não sabe se conhecerá amanhã. Ontem, hoje, amanhã é tudo a mesma coisa; eu não tenho destino, não tenho afazeres, apenas esse corpo que mantenho vivo sem saber porquê. Eis o que me resta: permanecer vivo; eis o que passa as longas horas dos meus dias.
Não é a fome nem a sede o que me atormenta, já as conhecia, já passei mais de um dia sem comer. Me dói é a solidão, é o estar só e o saber estar só no meio da multidão; é o estender os braços e me sentir um fantasma, não visto, intocável; é abraçar-me a um cachorro tão faminto quanto eu quando a noite esfria; é acordar no outro dia. Alvorada, a marcha continua.

Aprendi a dizer adeus e, obrigado a renunciar ao abraço de despedida, me lancei ao mar. Me pergunto: existe razão no desespero? Digo hoje em português "obrigado". Acredito: há.

Falaí, irmão!

Beleza? Eu tô bem, graças a Deus. Huahauahahahahahaaha.
Na boa, se eu viesse de outro planeta e me contassem o quanto o ser humano é estúpido eu não acreditaria... Só vendo pra crer mesmo.
Você não imagina no que eles são capazes de acreditar por aqui. Vou gastar o meu belo francês agora, hein? Insinue uma lágrima nos olhos enquanto simula um queixo trêmulo ao contar a desoladora história do acidente de papai e mamãe (a propósito, como vão os velhos?), e os trouxas fazem o que você quiser, é inacreditável.
Isso porque ainda não te contei do novo e saboroso ingrediente que adicionei à minha lastimosa saga.
Chega de falar bonitinho, puta coisa de boiola...
Voltando. É, meu caro, teu irmão se surpreende com a própria sagacidade... Imagine só que disse que vinha daquela outra terra maldita porque haviam me chamado negro. Deus do céu! Quantos neurônios são precisos pra enxergar que é justamente isso que sou! Se não carregassem essa cegueira causada pela culpa transmitida, acho eu, em cada gestação de um novo branco, perceberiam a estupidez da coisa toda. Que nada, basta dizer o óbvio: me chamaram negro! Ganha de todas: pederasta, matricida, corno, estuprador, retardado...
Quando ouviram essa, o povo daqui logo me instalou em um lugar com outros “desabrigados”. Sou foda, vai? A molecada dessa pocilga é bacana, a gente joga bola e tal... O azar deles, acredito eu, foi não terem criatividade (não me chame de diabólico!) e talento pra comover essa gente cretina do jeito certo. Os pobres estão aqui há sabe-se lá quanto tempo e ninguém move uma palha pra fazer alguma coisa, enquanto no meu caso, saca só, já tão até entrando em contato com a embaixada de Camarões!
Calma, calma, tranqüilo, tranqüilo, eles jamais vão saber que eu sou é do Senegal. O problema dessa gente é achar que africano é tudo a mesma coisa: faminto, digno só de pena, inculto, e por tudo isso, acima de qualquer suspeita. Pecam por se achar demais, se acham demais... Sempre vão se achar mais afortunados do que a gente. Que paguem o preço, oras. Mas, você deve tá se perguntando, eles não questionam a “perda” dos documentos? Acreditam mesmo que me assaltaram e levaram meu passaporte? Assaltar alguém como eu? Pois é... Acreditam.
Bom, mas de qualquer maneira, escrevo mais pra avisar que logo mais tô saindo fora. Não é que me apareceu uma tia com idéia de me adotar? Chega a ser ridículo, né? Num país com tanta criança de rua, os caras até pra adotar preferem um gringo... Santa (e providencial, diga-se de passagem) cegueira...
Enfim, assim que a poeira baixar por aí, vou encontrar vocês. Peça desculpas ao pai e à mãe, diga que sinto muito a pressão que a polícia tá fazendo, mas que continua valendo muito a pena ter matado aquela puta.

Abração,

O pobre africano anônimo... huahauahauahauahah

23 julho 2005

Fase terminada - 3º Tema

Após o término de mais uma etapa do projeto Círculo do Poder, é chegada hora de propor um novo tema. Desta vez, quem se responsabilizou por esta tarefa foi o Marcelo que sugeriu a notícia de jornal transcrita abaixo:
Diário de Santa Maria 12/07/2005


Gente
Situação do camaronês pode ser definida hoje

A Embaixada de Camarões em Brasília já entrou em contato com o Juizado da Infância e da Juventude de Santa Maria para falar sobre o garoto de 15 anos que chegou à cidade na sexta-feira. O jovem, nascido no país africano, teria viajado como clandestino em um navio até a Argentina. Depois de sete meses vivendo na cidade de Rosario, ele resolveu vir para o Brasil por causa da discriminação que diz que sofria.

A embaixada prometeu ao juiz da Infância e da Juventude, Luciano Barcelos Couto, que daria uma posição hoje sobre a situação do jovem. Segundo o magistrado, a embaixada ficou de passar um fax ao juizado com a resposta. A representação camaronense também já teria entrado em contato com o Departamento de Imigração da Argentina, para saber qual era a situação do africano naquele país. Saber a história do garoto é fundamental para ter uma noção se ele poderá ficar no Brasil.

O Diário também entrou em contato com a embaixada e recebeu uma resposta semelhante: hoje será dada uma posição oficial sobre o caso.

Enquanto isso, o menino vai se acostumando com a convivência com os novos amigos do Lar Metodista. Já jogou futebol e participou de uma roda de samba. Ontem, ele foi examinado por um médico. Não foram divulgadas informações sobre como foi a consulta nem se ele apresentou algum problema de saúde.

Muitos querem ajudar o garoto

As manifestações de carinho já começam a se multiplicar. Muitas pessoas estão ligando para o Lar Metodista, oferecendo-se para ajudar o jovem. Já haveria, inclusive, um santa-mariense interessado em adotá-lo.
Abraço a todos

21 julho 2005

Nada

Que todos fossem para o inferno, que se danassem. Por que era tão difícil sair daquele lugar? As pessoas trancavam as passagens, estendiam os braços com seus cigarros, falavam alto, alteradas pelo álcool, gesticulavam. Tentava sair desesperadamente do lugar. O que tinha ido fazer ali afinal? Não sabia explicar, as coisas foram acontecendo de uma forma muito imprevisível, as atitudes que havia tomado não foram calculadas, tudo tinha partido do inevitável. Não foi ali por causa dela, não esperava que ela estivesse ali, não teria como saber, não queria mais encontrá-la, sabia que não poderia vê-la, não ainda. Agora, só queria esquecê-la. Fora ali justamente para isso.

Chegou em casa, sentiu vontade de sair, se divertir, como fazia naqueles tempos em que ainda não a conhecia; iria num daqueles bares de boa música, em que sempre tinha algum amigo, conheceria alguma mulher bonita, tudo como antes. A idéia lhe proporcionou paz, fazia muito tempo que não se sentia assim. Tomou um banho muito quente e muito longo, havia relaxado. Vestiu a camisa preta e a calça jeans de costume, sentiu-se bem, atraente. Iria, finalmente, se entreter e não pensaria, um segundo sequer, nela. Fechou a porta do apartamento, reviu os bolsos, fez o habitual pequeno inventário: chaves, controle da garagem, carteira, cigarros. Caminhou até o elevador, cantarolante até. Enquanto esperava a máquina subir angustiou-se; já não tinha mais certeza se sentia-se bem, pensou em voltar, assistir algum filme, adiantar o serviço, vestir algo mais confortável. Não. Iria sair, teria paz mais uma vez. Suspirou fundo, abriu a porta. Olhou para o espelho. Pode ver o homem que entrava no elevador. Trinta anos, de preto, alto, magro, barba bem feita. Olhos castanhos, muito escuros, suportavam um olhar grave, e nele olheiras enormes – uma expressão cansada. Talvez, quem o visse daria-lhe bem mais de trinta. Não queria pensar nisso, não continuaria vendo o reflexo, não gostava de espelhos, andava de mal com a própria imagem. Vestia roupas escuras justo para que o espelho não lhe surpreendesse, trouxesse uma imagem diferente daquela com a qual se acostumara e que suportava.

Virou-se, então, de frente à porta. O soco da parada inesperada do elevador fez com que a angustia triplicasse. A porta abriu e entrou uma menina, deveria ter uns 17 anos: cabelos lisos e finos, loiros. Por que não tentava impressioná-la, falar algo engraçado, bem humorado, gentil? Não conseguia, não queria. A menina desceu no térreo, pode reparar na sua bunda. Idiota! Por que não tentei? Seguiu descendo, chegou no subsolo, desligou o alarme, entrou no carro, no porta-luvas o rádio, O que escuto? Não, estou indo para uma festa, preciso de algo que me anime. Não sabia escolher, ligou o aparelho na rádio de costume.

Deixou o carro no estacionamento onde já o conheciam, cumprimentavam-lhe, sempre, muito corteses. Foi até o banheiro do estacionamento, lavou o rosto e o enxugou, suspirou fundo. Não pensava nela.

Logo que chegou, sentou em um dos bancos do balcão, o lugar ainda não estava cheio. Pediu uma cerveja e ficou olhando os movimentos do barman, apenas para fixar o olhar para algo. O público da casa foi aumentando, as pessoas já amontoavam-se no balcão, passando bebidas por sobre sua cabeça, espraguejando a inconveniente posição que ele tinha tomado. Não poderia mais ficar ali, teria que levantar, se mover, não tinha vontade. Ânimo, nem para sair dali. Pediu licença para a mulher que lhe expremia, com o braço, na tentativa de alcançar a comanda ao barman. Era muito bonita, pensou em conversar com ela, não sabia como puxar assunto, ficou apenas a olhando. Pode perceber que o namorado havia se aproximado, marcando território, um tapinha em suas costas. No pequeno palco, um trio, guitarra, baixo, bateria. Não gostava destas novas bandas que minavam a cidade. Todas tentavam ser mordazes, com vocalistas viscerais, baixos marcantes. A vocalista era uma bela mulher, prendia sua atenção, “You're too complicated... we should separate it... you're just confiscating... you're exasperating...”. Não agüentava escutar mais nada disso.

Angustia. Não deveria ter saído de casa. Subiu a escada que dava na pequena pista de dança. No fundo, através da parede espelhada, pode vê-la dançando. Um arrepio correu pelo corpo. Havia cortado os cabelos, estavam agora pouco abaixo da boca, as mechas emoldurando o rosto quase retangular, não fosse o queixo fino. Pareciam mais escuros, deveriam estar molhados. Ela fazia movimentos lentos, sensuais, de frente para o espelho. Levantava os braços, unia as mãos, mãos desciam pelo corpo, ela não o via. Braços nus, as panturrilhas torneadas, as mãos na cabeça, cabeça baixa mãos no cabelo, mãos altas, se abaixava, levantava. Nenhum daqueles movimentos faziam sentido, irregulares, desritmados. Era linda a sua dança. Pode ver-se também no espelho, e viu-se como sombra, detalhe quase imperceptível, ao fundo. Imóvel, a observava, perplexo como na primeira vez que a tinha visto. Sentiu medo, lembrou de tudo que aconteceu depois de tê-la conhecido, de todas as noites que passara a procurando, em tantos bares, da obsessividade que ela havia gerado. Obcecado por ela.

Pode escutar o som do trio se infiltrado no música eletrônico da pista, a voz rouca da vocalista, parecia se esforçar: “protect me from what I want... protect me, protect me...”.

Não haviam tido um romance, uma “história” – na verdade, mal a conhecia. Há meses atrás, uma festa, num local bem distante de onde estavam agora, a encontrara. Trocaram apenas algumas frases... Ela, então, havia postado-se a sua frente, dançando, contra o seu corpo. Saíram da festa. Meio alcoolizado, convidou-a para andar de carro pela cidade. Foram até o Guaíba, ele sentiu sono, não poderia mais dirigir. Explicou onde morava, acordou dentro do carro, ocupando o lugar do carona, nenhum vestígio dela.

Riu, achou graça da situação, da perda de tempo. Mas não parou mais de pensar nela, perturbou-se. Passou a imaginá-la acordando ao seu lado na cama; tomando banho juntos; na mesa do café. Passou a imaginar uma vida ao seu lado. Os modos um tanto rudes dela, as roupas, a voz, o cheiro. Passou a desejar-lhe ardentemente. Iniciou a busca, a sair pelos bares, procurando, perguntando por ela. Ela precisava saber.

Queria dizer que estava apaixonado como nunca esteve antes, que não era homem destas coisas, mas ele se sentia assim. Que poderiam casar, ter um quarto só para os cds e os dvds. Enfim, planejariam a casa, a disposição dos móveis. Que ele não queria filhos logo, mas saberia respeitar a decisão dela. Ele precisava encontrá-la. Passou a confundi-la, a vê-la em outras mulheres, sempre assustado, paranóico.

Agora, ela estava mais uma vez a sua frente. Tinha os cabelos diferentes, é verdade, mas só poderia ser ela: braços, pernas, mãos... o modo como dançava. A procurou em tantos lugares, por tanto tempo, ensaiou tantas vezes o que diria e como diria para não parecer o mais completo idiota. Desta vez não a tinha procurado, entendia que deveria exorcizá-la da mente, que era uma besteira, uma doença. Mas não conseguia sair dali, queria, mas não tinha forças, sentia-se acuado.

Aproximou-se para que ela o visse no reflexo do espelho. Pode ver o grande sorriso que se abriu. Andando de costas foi, se juntando a ele, dançando, o via no espelho, mais uma vez, contra seu corpo. Ele não acreditava, precisava de uma prova de que ela era real. Tocou seus braços, desceu aos pulsos, tinha um cordão amarrado, uma pequena estrela, ela levantou os braços, seguindo a lógica desarmônica da sua coreografia, ele ficou com a estrelinha na mão, guardou-a no bolso da camisa.

Estendeu a mão para ela, numa expressão convidativa, ela correspondeu. Levaria ela para um lugar mais tranqüilo, diria tudo aquilo em que pensava todos os dias, explicaria a falta que ela lhe fazia. Sorrindo, ela se afastou, iria ao banheiro, desceu as escadas. Ele ficou contra o corrimão, vendo-a descer, esperando, ansioso. O trio já não estava mais no pequeno palco, a música eletrônica invadira os dois ambientes. Acabou descendo também, pagaria a conta, o caixa era próximo do banheiro – ali a esperaria.

Ela não voltou, o bar fechou. Aguardou, ainda, no cordão da calçada. Em vão.

Sentiu falta da vida que levaram, de acordar ao seu lado, do banho, do café. Sentiu falta das viagens, dos planos, dos amigos que fizeram. Não gostava de fotos, dizia que elas não poderiam reconstituir momentos, não permitia ser fotografada. Ela foi embora sem se despedir, sem explicação, sem deixar indício algum. Não esqueceu uma peça de roupa sequer, uma maquiagem, nada. Apenas o pequeno pingente, a pequena estrela, para qual ele não se cansava de olhar, rememorando tudo o que nunca viveram.

Amenidades

Acordei cedo hoje, como em todos os dias em que tenho algo de importante a fazer. Acordei decidido, pronto a livrar-me das velhas lembranças, pronto a por um fim a pedaços de um passado mal resolvido que eu, por honra, orgulho, medo, pena ou burrice, não permitia morrer.

“Amenidades”, ela diria. Por amenidades tratava aquilo que a dilacerava, um esforço inútil na tentativa de diluir o sofrimento que a amargurava, diminuir a culpa e a solidão que causava a si mesma. “Amenidades”. Assim chamava os sentimentos que traziam à tona aquelas velhas fotografias de nós dois.

Foi hoje. Sereno, dirigi-me ao cais onde, finalmente, afoguei mágoas, angústias e ameninades.

Bilhete de Despedida

Esvaziei a terceira taça de vinho e pensei em dormir. Mas não era a hora certa ainda; precisava ter a conversa. A mesma conversa da qual durante tantos anos fugi, como se fosse esperar pelo padre com a mão à palmatória. Era como acordar na manhã e ter que explicar as batidas no carro de seus pais. Por mais que tu fizesses, eles iriam descobrir. Coisas de adolescente; mas são essas coisas de adolescente que tem me perseguido nos últimos anos. E são delas que tenho fugido incessantemente. Quando me olho no espelho vejo aquela pessoa na qual eu saberia que iria me transformar, mas não conseguia evitar: um adulto, uma vida infeliz, pêlos crescendo por todos os lados, uma mentira e um caminho sem volta. Cada ano que passa me sinto mais perto da morte e nada além disso. Tenho a sensação de que tudo isso vai acabar logo e que não precisarei me preocupar mais. Primeiro eu achava que não iria passar dos 23 anos. Mera ilusão, queria morrer como um Ian Curtis, mas não tive coragem de arrancar minha própria vida. Não sabia de muitas coisas ainda, a esperança ainda tinha pulso.


Fui o bom moço da família, estudioso, educado, criado pela avó. Minha tia morreu semana passada e quando as pessoas, que a conheciam, vinham me cumprimentar me diziam: ela tinha orgulho deste sobrinho. Mas não sinto orgulho de mim mesmo. Sei que no fundo sou um preguiçoso, fracassado, sem futuro, que não tem nenhuma habilidade aparente. Tento esconder isso através de uma máscara distorcida que não reflete meu ser, ecoando em risadas falsas e sorrisos amarelos. Sou mais amargo que aparento, mais infeliz que gostaria. É como quando fingia que estudava, mas que na verdade lia uma revista em quadrinhos que estava no meio dos livros da escola.


Já fui o bom moço, o bom namorado, o bom filho, o bom genro. Leio livros nos ônibus para mostrar às pessoas que sou culto, dou esmolas a quem me pede, não jogo sujeira nas ruas, não dirijo embriagado, não falo palavrão, não suborno, não omito, não maculo. Servi ao exército como bom cidadão; aprendi novas posições como se espera do bom amante; fui o fair-play do time; fui um doente para que tivessem pena de mim; fui o filho sábio a zelar pela casa à espera dos pais; fui o estagiário competente alternando funções; fui o bom amigo sempre com o “deixa-disso” na ocasiões mais próprias; fui o aluno obediente a aceitar o que o professor diz; fui o músico compenetrado a tocar a mesma nota ao infinito; nunca usei drogas; não roubei, não matei, não pequei; já fui o traído, o coitado e o conformado. Fiz todas fantasias, e essa é a palavra: fantasias. Meu verdadeiro eu escondeu-se embaixo de mil carapaças, protegido de tudo e de todos.


De hoje não passaria, aquela conversa iria acontecer. Eu precisava me ouvir. Toda minha vida foi uma encenação. Sempre me passei por McCartney, mas morro de vontade de ser Lennon. Este exorcismo deveria ter sido feito há anos atrás. Uns dez anos. Minha primeira camiseta de banda comprei aos 20 anos. Semana passada vesti minhas primeiras calças rasgadas. Quisera ter eu os 10 quilos a menos que eu tinha há 10 anos atrás, mas isto se torna cada vez mais difícil. Tudo que me resta é ser um delinqüente, aquele que por tantos anos eu mostrei desprezar. Por muito tempo tudo que eu esperava era a pena das pessoas. Agora, qualquer outro sentimento me serve, ódio, indiferença, desprezo, qualquer um, menos pena.


Quis me libertar, dizer o que pensava, não reprimir meus sentimentos. Mas sempre tive medo de represálias, de olhares inquisidores, da atenção redobrada. Não preciso de braços à minha volta, não preciso de drogas para me acalmar. Nunca consegui me expressar, nunca pude plenamente. Não quero mais ser quem eu sou e está muito tarde para voltar atrás.Tudo foi dito, a gaveta está vazia e tornará a ser fechada. Talvez eu me surpreenda, talvez eu surpreenda a todos. Resta a dúvida: a fácil escapatória em uma fina lâmina de barbear ou o grande estardalhaço envolvendo pólvora, buracos e um circo armado de madrugada.

Enquanto você dormia

Olhei para a cama e você parecia dormir. A onda de amor que me invadiu foi tão intensa que quase doeu. Eu quis te abraçar, alisar seus cabelos e ficar olhando para seus lábios, esperando que eles se abrissem em um sorriso e formassem as covinhas que me conquistaram desde a primeira vez que nos encontramos.

Pela porta do quarto o garoto saía com uma expressão indecifrável no rosto, a velha mala verde equilibrada sobre o ombro direito e um embrulho aparentemente pesado pendendo da outra mão. Felipe. Esse, o nome dele. Na hora não me perguntei como ou porque eu sabia seu nome. Era tudo muito vago, estranho... Senti-me apenas que devia segui-lo, apesar da náusea, apesar da tontura.

No corredor, ainda mais revirado do que o quarto, percebi o quanto tudo estava indefinivelmente diferente. Algo no ar, na luz, nos sons. Ainda corria suor pela testa do menino, por suas costas e por seus braços, marcando a camiseta -- o odor atingia minhas narinas em cheio. Enquanto descíamos a escada analisei seus traços quase infantis. Talvez fossem seus grandes olhos castanhos e brilhantes emoldurados por cílios longos e curvados, a pele branca irradiando vitalidade, ou o buço incipiente que o faziam parecer muito mais novo que seus recém-completados vinte anos. Os braços e mãos lhe denunciavam a idade, contudo. Olhei para as pernas fortes saindo da bermuda de surfista azul e branca e terminando nas canelas grossas e peludas mal cobertas pelas meias brancas, o tênis marrom um pouco gasto: um rapaz forte, bonito, cheio de vida.

Ele tomou a direção da garagem, passando pela cozinha ao invés de seguir pela sala de estar, de onde um vento frio vinha das janelas abertas, e onde o aparelho de som ainda tocava os maiores sucessos de Sade Adu:

-- No need to argue, he's a smooth operator ...

Pensei na família do garoto, tentando imaginar como teria sido sua criação, quais valores lhe teriam sido incutidos, e inevitavelmente nos imaginei no lugar dos pais dele. Nós conversamos muito sobre filhos, eu e você, antes de decidirmos oficializar os quase seis anos de relacionamento. Achamos melhor esperar mais um pouco antes de tê-los. Eu com 31, você, 27, e ainda assim nenhum dos dois seguros da propriedade de trazer mais uma alma ao mundo, quando nem poderíamos dizer se estaríamos juntos na semana seguinte... Anderson e Solange, o casal mais invejado, mais certo e também o mais improvável: você sempre tão correto, sempre uma incontestável promessa de sucesso e eu, como qualquer mulher educada demais, sufocando desejos de viver perigosamente, querendo em você uma Thelma para a minha Louise. O que nossos agora para sempre hipotéticos filhos teriam aprendido com isso?

Nós sempre soubemos que o casamento era, no fundo, um meio de fugir da sina de nossa geração, esse amontoado de seres sem referência que viu o mundo ser catapultado da época das TVs branco-e-preto para o tempo dos celulares minúsculos multifuncionais com câmera acoplada ligados à internet por meio da tecnologia waap. A infame "geração x". Um horror, essa indefinição estranha que tornava nossas vidas – no aspecto profissional, emocional, ou mesmo nos sentidos mais íntimos e pessoais – um incômodo desfile de pseudo-potenciais. Podíamos tudo, mas nada nunca acontecia. Sabíamos, conhecíamos tão mais que nossos pais, e tão assustadoramente mais que os pais deles, e mesmo assim nunca fazíamos nada de relevante. O mundo da informação a nossos pés – ou dedos – e tudo que fazíamos era repassar e-mails em tardes de tédio no escritório... ou, no seu caso, colecionar fotos pornográficas (você achou que eu nunca descobriria a senha de seus diretórios secretos mal escondidos?).

Foram quantos anos de amizade antes de percebermos a impossibilidade de viver um sem o outro? Quinze? Mesmo antes de aprendermos a falar direito, o fantasma da mediocridade era o único desconforto em nossos poucos silêncios – ameaça surda de um inferno tão horrendo que nem Dante se atreveria a descrever; uma morte em vida nos rondando a cada nova loira que víamos surgir apresentando programas infantis na televisão.

Tínhamos que ser alguma coisa, eu e você, e uma família foi o que pareceu mais à mão. Quem sabe o milagre da maternidade não me faria, de um momento para o outro, achar um propósito qualquer nos paradoxos da condição feminina? Quem sabe, ao ser pai, você finalmente deixasse de ser o eterno único filho, mimado e reclamão? Se não nos casássemos, acabaríamos representando o mais ancestral dos incestos: eu, uma Jocasta de peitos secos para o seu Édipo com complexo de Peter Pan.

A luz fria da garagem também me pareceu diferente quando Felipe acionou o interruptor. Ele abriu o porta-malas do carro e depositou o embrulho de lençol, com cuidado, como se houvesse objetos muito delicados dentro dele. Depois começou uma série de idas e vindas, enchendo o carro como se estivesse preparando-se para viajar. Numa delas a música parou, bem quando Sade dizia:

-- In heaven's name, why are you walking away? Hang on to your love .

Outra onda de amor (amor?) por você me tomou, mas desta vez a dor foi mais do que metafórica e dobrou-me em duas. Em pânico, não conseguia mais respirar, a visão escureceu e pensei ter ficado louca – no breu em que subitamente me vi, vozes horríveis ecoavam, perto, longe, em coro, lutando para sobrepor seu desespero às demais. Eu estava alucinando? Por que estava tão frio? Do fundo de mim, antes que eu pudesse fazer algo a respeito, partiu um grito, quase um uivo, apavorante: gritei por você.

Quando voltei a mim, estava estirada por sobre os ladrilhos frios da garagem. Tudo estava silencioso, calmo, e Felipe estava parado junto a uma bancada, examinando algo atentamente. Levantei-me para ver que, à frente dele, estava aberta a mala que o vi carregar para fora do quarto.

Era sua, aquela mala, reconheci. Uma que ficava esquecida em uma prateleira do closet, e à qual você sempre recorria quando ficava melancólico: um "baú" de lembranças de sua infância e adolescência, morada de miniaturas e medalhas e revistas e uma infinidade de papéis e anotações que registravam em silêncio sua história.

Eu pude sentir a vibração de cada objeto que ele ia apanhando, e captei a reverência tranqüila com que os examinava. Lentamente sua vida passava pelos dedos cuidadosos do garoto, que parecia hipnotizado por tudo aquilo, como se aquelas recordações a ele pertencessem, também.

Felipe olhou com interesse suas fotos, uma a uma. Todos os nossos amigos, alguns muito mais seus do que meus, e com os quais nem sempre soube conviver muito bem... Jorge quis me beijar numa festa, enquanto você foi comprar mais cerveja com os outros rapazes. A rosa tingida de preto em nossa porta foi obra dele – disse que seu coração estaria para sempre de luto por mim, morta para ele ao casar-se com seu melhor amigo. Já com Reinaldo a situação foi cômica, apesar de eu ter depois ficado com pena dele. Quando, depois de meses insinuando-se, ele conseguiu encurralar-me em um abraço mais apertado, eu descobri da maneira mais inusitada que os boatos de que ele sofria de ejaculação precoce eram verdadeiros. Foi ele que me ligou três vezes numa madrugada de fevereiro, bêbado, pouco antes de separar-se da Lucíola. Seus amigos, que sempre o amaram e temeram por motivos que nunca cheguei de fato a compreender.

Uma foto minha me fez estremecer novamente. Talvez pela falta de vida da pose, que me fez pensar na personagem daquele filme de terror japonês com seus cabelos longos e desgrenhados. Uma alma penada.

Desviei imediatamente minha atenção para os bloquinhos de anotações que Felipe manuseava. Sorri de leve, pois sabia que você via em suas infindáveis anotações o germe das obras-primas que finalmente elevariam a literatura brasileira ao patamar de "grande literatura universal". Meu querido Anderson, minha alma gêmea, guardava em si o germe de um super-herói das letras nacionais, que nos salvaria da armadilha de nossas cores e costumes – nós, os bons selvagens, nós, um país de mulatos inzoneiros, nós que, em quaisquer representações internacionais, falamos espanhol e moramos todos no Rio de Janeiro! Estava em suas mãos alterar esse cenário irreal e triste. Direto de seus blocos de notas, o romance definitivo da experiência brasileira surgiria para decretar o fim da era Paulo Coelho.

Seu refinamento intelectual era tão excitante para mim quanto para você, que adorava a sensação de poder advinda da pressuposta superioridade de seus muitos argumentos. Admito que algumas vezes cedi apenas para vê-lo inchar-se todo sob um influxo de testosterona, o macho-alfa com um Q.I. digno do Mensa. Nossas melhores transas quase sempre vinham depois de discussões-cabeça.

Junto às suas notas estavam os poucos exemplares que sobreviveram de suas coleções de quadrinhos. Por um momento me arrependi de ter sido inflexível com relação a elas. Sua fisionomia até mudava toda vez que tocava nesses assuntos – sua voz ficava mais alta e intensa, os olhos com um brilho diferente, e você gesticulava feito um doido, falando sem parar sobre universos paralelos. Eu gostava, achava bonitinho, e me fazia feliz vê-lo feliz. Passávamos horas discutindo sobre violência e o papel da mulher em fábulas hiper-machistas. Era interessante ouvi-lo argumentar que a cueca por fora da calça colante era uma forma de contornar a hipocrisia da nossa sociedade que não se admite falocrata: o homem pode ser "super" em tudo, menos explicitamente naquilo que faz dele um homem, no sentido biológico.

Por fim, apareceram na mala os livros da sua vida, a "Coleção Anderson de Clássicos da Literatura". Apesar de sua insistência, não li nenhum deles. Sei da importância de cada um para a sua formação, mas a mim bastava adivinhar-lhes o conteúdo pelos reflexos em suas atitudes. Aquele ar que você assumia ao citar algum deles para encerrar nossas conversas deixava claro que, para você, eram verdades absolutas, incontestáveis.

E havia uma ficha. Solitária, anacrônica, enigmática, tão insignificante mas tão carregada de significados que ficamos, Felipe e eu, como que absorvidos por ela, irmanados numa contemplação muda e expectante, como se houvéssemos mesmo ligado para algum lugar e ficado, de alguma forma, congelados no instante que antecede o sinal de chamada ou de ocupado. Suspiramos em uníssono. Ele foi ainda uma vez para a sala e voltou com a mala carregada de alguma outra coisa, pesada, pelo jeito. Entrou no carro, deu a partida e foi embora.

Não foi muito depois que você apareceu, com o ar desolado e confuso de quem acaba de acordar de um longo sono, e sentou-se ao meu lado, me abraçando. Assistimos em silêncio ao nascer do dia, e vimos quando os primeiros vizinhos chegaram, primeiro intrigados com as portas escancaradas, e depois aos gritos e em pânico quando encontraram meu cadáver junto à porta da sala, e o seu sobre a cama, ambos desfigurados pelas muitas facadas desferidas pelo assaltante-menino.

Nada parecia nos dizer respeito. Adormecemos nos braços um do outro e, quando acordei, já estávamos aqui.

Com eles.

Sei que olhar para eles dá medo, mas eles disseram que podem nos ajudar, se lhes fizermos um pequeno favor.
Parece que o Felipe fez um acordo com eles e não cumpriu...