Os seminaristas
Reunião de pseudoescritores com ideias diversas sobre diferentes assuntos. Finalidade? Precisa alguma?
Esculpido em carrara
Há trinta anos Nestor procurava no filho traços que apontassem qualquer semelhança consigo. Nas linhas do rosto reconhecia a doce genética materna, que, por sinal, no rapaz não caía bem, sendo que não havia nele qualquer outra característica que julgasse familiar. Nada no filho reconhecia como seu – idéia com a qual, na verdade, no todo não lhe desagradava, a não ser pelo inconveniente de ser chamado de pai.
Nestor tinha pele clara, cabelos e olhos castanhos. No rosto sobressaia-se o nariz, que em que pese não fosse grande, possuía linhas duras, o que, em conjunto com as sobrancelhas grossas, conferia-lhe um ar soturno. As mãos e os pés eram grandes, os ombros largos, as canelas finas e as pernas grossas. Era um homem de estatura mediana, pouco acima do peso para sua idade.
Marcelo tem olhos finos, e nariz pequeno. A pela é mais escura que a minha. O rapaz é muito alto, possui costas estreitas. Destoa muito do fenótipo da minha família. Certamente, não é meu filho. Pensava.
Acabrunhava-se, ainda, o suposto pai com o gênio do filho. Achava que nenhum atributo de personalidade havia sido herdado, tampouco adquirido ao longo dos dezenove anos de convívio familiar.
Para bem da verdade, por motivos que sequer compreendia, Nestor sempre desdenhou do filho.
Quando recebeu da esposa a notícia da gravidez não se comoveu. Ao escutar a frase Estou grávida, não sentiu nada de extraordinário. A impressão vivenciada foi similar à mais corriqueira das sensações, como se algo prosaico estivesse sendo dito, tal qual “precisamos fazer compras”, ou “a calha está novamente entupida”. Comovera-se, contudo, com as lágrimas nos olhos da mulher, razão pela qual acreditou que os sentimentos inerentes à paternidade chegariam ao seu tempo.
Na maternidade, ao ver o filho pela primeira vez, fora acometido de uma inexplicável náusea, dores estomacais e arrepios na espinha. Era nojo o que sentia. Com o passar dos anos foi dominando os inoportunos mal-estares, de forma que quando Marcelo completou cinco anos viu-se apto às praticas paternais, tais como os jogos de bola e pescarias mensais.
Entretanto, quando levava o filho à cama e o via adormecer, analisava a respiração da criança, o tremer de lábios, os pequenos gestos noturnos e sempre de asco era tomado.
Quando o filho completou dez anos resolveu procurar ajuda especializada. E após superficialmente transitar entre psicólogos e psiquiatras, que nada de concreto diziam, resolveu seguir o conselho obtido à porta do confessionário: Amar ao próximo como a si mesmo é dever de todos os homens na Terra, meu filho. Cumpra seus deveres de pai e reze dez pai- nossos e dez ave-marias.
As ave-marias e pai-nossos passaram a compor a rotina de Nestor que a cada dia certificava-se de que ainda não amava o filho. As orações diariamente eram feitas ao acordar, antes de dormir, e, ainda, em períodos alternados do dia quando se via pensando fixamente na hipótese de abondanar a esposa para nunca mais ver, ou mesmo ouvir, qualquer menção ao filho.
E durante anos o homem lutou com todas as forças contra o absoluto desdém sentido pelo filho, o qual jamais foi dominado.
Para Marcelo, jamais faltou o carinho materno e o auxílio material paternal. A indiferença com qual o filho foi tratado pelo pai ao longo da adolescência uniu mãe e filho e afastou Nestor da relação familiar.
A pertubação de Nestor com o passar dos anos se avolumou, sendo que durante o dia eram por ele revezados os sentimentos de culpa, desprezo e arrependimento por um dia ter se tornado pai.
Quando completou 49 anos, esposa e filho fizeram as malas. Não houveram despedidas. E longos anos de alívio se passaram. As ave-marias e pai-nossos, por precaução foram mantidos. Na conta da esposa Nestor depositava mensalmente metade do salário recebido como agente ferroviário.
Nestor sentia que a ausência do filho só lhe fizera bem. O homem recuperava sua humanidade. Era capaz de amar pessoas, realizar gentilezas, fazer amigos.
Aos 59 anos seus pensamentos voltaram a reincidir no filho. Pensava que o rapaz, agora com 29 anos, deveria ter acentuado a atroz dessemelhança.
Em uma noite o telefone de Nestor tocou e, antes de atender, pôde sentir um arrepio lhe correr a espinha, acompanhado de uma forte náusea. Alô, Nestor, escutou a voz da esposa, ontem Marcelo se tornou pai.
Aos 60 anos o homem tornara-se avô.
Nestor vislumbrou a possibilidade de se redimir. De amar ao Neto como não amara ao filho. Depois de muitos anos, dormiu e acordou sem rezar.
Feitas as malas, partiu ao encontro do filho. Após tocar a campainha pode ver Marcelo se aproximar, quando percebeu semelhanças físicas nunca antes vislumbradas: os cabelos, a barba fechada, o timbre de voz, o andar firme. Os braços estendidos ao filho não chegaram a lhe alcançar. Pode sentir um forte calor no peito acompanhado da perda da audição. A visão se fechou. O corpo desabou no chão, fazendo ranger todos os cômodos da casa.
Velho maldito. Ainda não posso amar meu filho.
O Capp não cumpriu a promessa dele. Dois anos desde o último post já se passaram e nada ainda de "Minhas Férias".
Marcadores: CdP2010
Senhores estou retornando ao mundo virtual.
I
Durante minhas férias, programei uma viagem de estudo às terras do oriente, onde tive a oportunidade (o prazer) de hospedar-me em tal casa antiga, que só o cheiro do local já trazia o sentimento de milhares de anos de história. Não vou saber precisar bem a cidade, mas como muitas, era cercada por tal desertificação que mantinha a comunidade unida na sua luta contra sua própria natureza. Um povo hospitaleiro, o qual conseguiu tranqüilizar meu medo de enfrentar tal civilização que tem uma face tão dura, marcada por tantos fatos milenares. Arriscando meu hebraico enfadonho, consegui me comunicar e com o tempo pude produzir diálogos interessantes e instrutivos com os quais pude elaborar um suposto guia de viagem sobre aquela região. Não estive só em minha ilíada em língua estranha. Um americano, Richard Adams, que hospedava-se em quarto vizinho, e que também viajava com os mesmo propósitos que eu, teve a mesma dificuldade, para se fazer entender. No fim do corredor, encontrava-se Lisaveta Ivanovna, russa, porém versada em diversas línguas, inclusive na hebraica. Lisaveta foi muitas vezes nossa salvação.
Várias vezes sentávamos nós três na sacada, eu apresentando meu melhor inglês macarrônico que pude aprender, comentávamos sobre a vastidão das culturas existentes e nossa petulância perante milhares de anos que nos cercavam em querer colocar um mundo em poucas páginas. Especulávamos também a dificuldade das pessoas diferenciarem indivíduos de raças diferentes. Adams, dizia que todos os japoneses, além de serem uns filhos de umas putas, eram todos feitos da mesma merda. Certa vez, a questão que presenciamos no local também foi abordada, pois para nós todos daquela região eram parecidos. Adams afirmava que Abraão, dono do lugar onde estávamos hospedados, tinha trepado com todas as mulheres da cidade e por isso eram todas as crianças parecidas. Talvez envergonhada pelo vocabulário de Adams, Lisaveta retirou-se, alegando cansaço. Retorna a meus ouvidos as simples, mas eficientes palavras de Adams, o qual costumava a se referir a Deus como "the biggest son of a bitch", o qual era culpado por toda essa merda que estava ali. Contradizia-se, já que alegava ser ateu. Muito influenciável que sou, comecei a usar muito de suas gírias, em especial "son of a bitch" e "fuck". Muitas vezes tive que me policiar em frente a Abraão, evitando vocabulário que de alguma forma pudesse ofendê-lo (mesmo que ele não soubesse o inglês, poderia identificar tais palavras). O americano não se constrangia, e pude notar que Abraão não o suportava, mas o tolerava pelo bom dinheiro que pagava pelo quarto. A arrogância de Adams, somente tolerada por mim (não só pelo fato de eu ser muito paciente, mas por me sensibilizar com tais personas que não tem nada além de sua própria altivez) contribuiu para me aproximar de Lisaveta, por quem me enamorei desde o primeiro momento.
Adams não se demorou para ir embora, alegando precisar concluir sua pesquisa até o fim do ano, e muitos lugares ainda esperavam por sua visita. Deixou-me seu endereço em New York o qual nunca visitei e, se não me engano, já não tenho mais. Lisaveta também não se demorou, iria voltar à sua terra para terminar seus estudos, porém, prometemo-nos manter contato. Conquistado pelo clima da região e pelo ambiente amigável, decidi prolongar minha estadia por lá. Minha amizade com Abraão intensificou-se com a partida de Adams e Lisaveta. Meu medo de ser um estrangeiro solitário fez-me agarrar no primeiro galho do penhasco que visse pela frente. Abraão, com muita simpatia aceitou ser esse suporte. Minhas conversas na sacada com Adams e Lisaveta, foram substituídas por longas histórias contadas por Abraão. Na minha gula por traduzir tudo que ele dizia, não me coordenava em falar; apenas ouvia. Isso conquistou a simpatia de Abraão, homem de largos gestos, comunicativo e, como aprendi, que não gostava de ser interrompido.
Certa noite ele se enveredou na história de um espelho de forma circular, obra de Solimã, filho de Davi - seja salvação para ambos! -, cujo preço era muito elevado, pois era feito de diversos metais e aquele que olhasse em seu cristal via o rosto de seus pais e de seus filhos, desde o primeiro até os que ouvirão a Trombeta. Imediatamente calou-se, envergonhado, parecia ter falado mais do que devia. Tentei tranqüilizá-lo com meu parco hebraico, jurando-lhe de que tal revelação (a qual quebro agora por motivos que todos entenderão) não constaria em nenhum relato meu sobre esta viagem. Sensibilizado com tal juramento, ele prometeu-me mostrar um tesouro que escondia, e só o faria pois notava o meu esforço por agradar-lhe. Levou-me até a sala de estar da casa e pediu-me que o esperasse ali. Ele sumiu por uma outra porta e por alguns instantes pude ouvir o som de grandes móveis sendo arrastados. Logo ele reaparece trazendo nas mãos um largo objeto enrolado em um pano verde. Pediu-me que jurasse mais uma vez manter isso fora de meu relato, o que o fiz sumariamente. Tirou o objeto de dentro dos panos e o depositou sobre a mesa. À primeira vista não passava de um espelho comum do qual não me preocuparia em gastar mais que 5 dólares para tê-lo.
- Este, meu amigo, é o espelho de que lhe falo; o espelho de Solimã, filho de Davi, sobre o qual lhe direi a história. Nos primeiros dias, havia no reino dos andaluzes uma cidade na qual residiam seus reis. Nessa cidade existia um forte castelo, cuja porta deveria manter-se fechada. Cada vez que um rei herdava o trono deveria colocar, com suas próprias mãos, uma fechadura nova na porta. Nela somaram-se 24 fechaduras, até subir no trono um homem diabólico que não pertencia à casa real e que ordenou que as portas fossem abertas. Muitos tentaram persuadi-lo de tal empreitada, mas sem sucesso. Com sua mão direita (que arderá para sempre) abriu a porta do castelo e inspecionou seus aposentos, dentro dos quais muitos tesouros foram encontrados, inclusive este o qual lhe mostro agora. Porém na parede final de uma longa sala encontrou a inscrição que dizia "Se alguma mão abrir a porta deste castelo, os guerreiros de carne que se parecem aos guerreiros de metal da entrada tomarão o reino". Antes do final desse ano, Táric apoderou-se dessa fortaleza, derrotou esse rei, vendeu suas mulheres e seus filhos e assolou suas terras. Assim foram se expandindo os árabes pelo reino da Andaluzia. Talvez a história não lhe revele muito sobre o espelho, mas a forma como foi encontrado me diz muito. E além disso, é tudo que sei.
Mantendo interesse com o qual ouvia todas suas histórias, o encarava sem surpresas.
- Teu rosto incrédulo parece desafiar-me, o mesmo ocorreu com um outro viajante que o encarou, e te digo: se duvidas, experimente-o.
Assim o fiz e tudo me pareceu a mais límpida verdade. Vi o primeiro Adão, percorri todos meus antepassados que um dia ocuparam os Pirineus para depois se deslocarem para a região central da África em busca de diamantes; vi meus avós de séculos passados em suas cruzadas inúteis; vi desbravadores em um novo continente selvagem e então vi eu, e somente eu.
Falei o corrido para Abraão e suas notícias não eram agradáveis. O espelho não mente jamais e isso significava que eu era último de minha linhagem. Muito poderia se deduzir disto, talvez até uma morte prematura me aguardasse na próxima viagem. Assombrado pelo meu futuro incerto parti em direção à Rússia, deixando a terra hospitaleira de Abraão, o qual me fez jurar mais uma vez manter nosso segredo.
Chegando em São Petersburgo procurei por Lisaveta e a pedi em casamento, eu não tinha mais nada a perder; e não perdi. Em pouco tempo veio a notícia que me tirou um grande peso da alma: Lisaveta estava grávida. O espelho era falso? Seria Abraão um charlatão tentando aproveitar-se da minha credulidade conquistada em longas noites de histórias? Nada mais importava, a linhagem Forlon continuaria.
Sete anos depois, vendo meu filho correr pelo gramado de minha casa lembro de Adams e balbucio:
- Mas esse filho da puta é a cara de Abraão.
Após um longo tempo de ociosidade, as atividades serão retomadas. A bola da vez pertence a Eduardo Capp que sugeriu o tema “Minhas Férias”. Apesar de estarmos sofrendo alguns desfalques, creio que os interessados podem continuar escrevendo, pois devido à minha falta do que fazer, irei incomodar muita gente ainda com esse projeto. Dado recado, abaixo seguem os dados do 5º tema.
O coração batia acelerado. A capa plastificada, o número catalográfico. Pequenas orelhas de burro, sucesso eram o que significavam. Era lida, muitas vezes, remexida. E a cada nova cópia que dela se produzia, por oito mãos passava. Mas guardava, ainda assim, seu perfume.
Adquirira, é verdade, algum cheiro de mofo. Ocorre que a biblioteca tivera, há dois anos, problemas de infiltração, o que acabou prejudicando a aparência do material, mas as folhas eram aquelas, nelas havia tocado, guardado as impressões do lugar, nas entranhas do papel as percepções daqueles dias. Aqueles dias. Nunca mais esqueceria.
Foi assim: Do outro lado da linha telefônica a voz grave-fina do rapaz. A velha professora de português atendera, sorte a dele, ela não andava para telefonemas nos últimos tempos. Não sabia porque, não queria, mas acabou atendendo por descuido, por reflexo, talvez.
Sim?
Olá, tudo bem? O professor Barsan me passou o número da senhorita... Bom, eu precisava da revisão gramatical do meu trabalho. A senhorita teria como fazer?
Para quando?
Uma semana.
Qual é o assunto?
Oscilação Média Limitada.
Sim menino. Mas, é física, geografia, matemática?
Ah, sim, matemática.
Muitos termos técnicos?
Bastante.
Então tens que participar da correção. Posso amanha, às quinze horas e trinta e três minutos.
Claro! Muito Obrigado.
Até amanhã.
Bateu o telefone. Ele não gostou da voz, da rispidez, da correção a dois. Mas não tinha tempo, nem opção.
Ela não queria. Mas devia a Barsan. Faria.
Noutro dia preparou o chá e o aguardou. Menino magro, de língua presa, pouco expressivo, tímido, naturalmente incomodado. A correção durou três dias. O material ficou muito bom. Ele providenciou a impressão do material e retornou com a encadernação, como ela determinara, para que verificasse a necessidade de errata. Sentarem-se juntos, ela releu a tese de 247 laudas, cuidadosamente. Não constatou nada, o trabalho estava impecável. Pediu para que ele repetisse o procedimento. Enquanto isso ela ficou o observando. O fez por duas horas e vinte e sete minutos ininterruptos. Reparou nos dedos magros, na delicadeza dos movimentos. Na respiração. Na tosse seca. Na vida que as letras ganhavam em seus olhos. Na evidente satisfação ao ler a própria obra. Nas variações da expressão facial, nos sorrisos, discretos, de canto. Hipnotizada por cada gesto.
Ele pediu se poderia fumar. Ela não fez nenhuma objeção. Pediu fogo, estendeu-lhe. Fumando, continuou lendo o material. Acendeu mais um cigarro. Ele era cuidadoso, lento.
Perfeito, ele disse. Disse a ela, disse a si mesmo. Disse satisfeito, com o tom de voz do regozijo. Perfeito, ele poderia voltar para seu país, nunca mais veria os olhos cansados daquela mulher, não freqüentaria mais as bibliotecas daquela cidade, não continuaria naquela pensão, não imploraria mais por uma audiência com Barsan.
Pagou pelo serviço, agradeceu, foi embora.
Ela fechou a porta, voltou-se para a cadeira em que ele esteve sentado nos últimos dias. Sentiu sua falta. Esperou dois dias. Estava nervosa, mas havia decidido: ligaria, o convidaria para tomar um café. Sim, faria. Suspirou, discou os números, a ordem deles parecia enorme. Cada sinal de chamada durava uma eternidade. Os sinais se repetiram, doze vezes, sem retorno.
Tentou por trinta dias.
Ele partira da cidade.
Procurou por Barsan. O rapaz havia retornado as origens, informou-lhe. O trabalho foi laureado, acrescentou, ele recebera propostas de doutorado, sim, mais de uma. Não sabia por qual delas ele havia optado, é verdade. Enfim, Barsan não sabia seu paradeiro.
Mas haveriam notícias. Não houveram.
Só o que tinha era o original resguardado na biblioteca universitária. Ela já havia providenciado a cópia. Mas nela não podia reconstituir o momento derradeiro. As tragadas do cigarro, o toque dos dedos. Precisava do original, cheirá-lo, cuidá-lo.
Segurou forte, saiu correndo.
Em um canto mais reservado da Sala dos Professores, as duas mulheres elegantemente trajadas discutiam em sussurros, mas mesmo assim acaloradamente:
Se eu conheci o Tiço?!
Que sentido há quando se perde as esperanças? Não existe mais "pai", não existe mais "mãe", não existe mais "casa" e o irmão que me restava partiu para terras distantes. O que tenho, agora, é um resto de vida que não sabe se conhecerá amanhã. Ontem, hoje, amanhã é tudo a mesma coisa; eu não tenho destino, não tenho afazeres, apenas esse corpo que mantenho vivo sem saber porquê. Eis o que me resta: permanecer vivo; eis o que passa as longas horas dos meus dias.
Que todos fossem para o inferno, que se danassem. Por que era tão difícil sair daquele lugar? As pessoas trancavam as passagens, estendiam os braços com seus cigarros, falavam alto, alteradas pelo álcool, gesticulavam. Tentava sair desesperadamente do lugar. O que tinha ido fazer ali afinal? Não sabia explicar, as coisas foram acontecendo de uma forma muito imprevisível, as atitudes que havia tomado não foram calculadas, tudo tinha partido do inevitável. Não foi ali por causa dela, não esperava que ela estivesse ali, não teria como saber, não queria mais encontrá-la, sabia que não poderia vê-la, não ainda. Agora, só queria esquecê-la. Fora ali justamente para isso.
Acordei cedo hoje, como em todos os dias em que tenho algo de importante a fazer. Acordei decidido, pronto a livrar-me das velhas lembranças, pronto a por um fim a pedaços de um passado mal resolvido que eu, por honra, orgulho, medo, pena ou burrice, não permitia morrer.
Esvaziei a terceira taça de vinho e pensei em dormir. Mas não era a hora certa ainda; precisava ter a conversa. A mesma conversa da qual durante tantos anos fugi, como se fosse esperar pelo padre com a mão à palmatória. Era como acordar na manhã e ter que explicar as batidas no carro de seus pais. Por mais que tu fizesses, eles iriam descobrir. Coisas de adolescente; mas são essas coisas de adolescente que tem me perseguido nos últimos anos. E são delas que tenho fugido incessantemente. Quando me olho no espelho vejo aquela pessoa na qual eu saberia que iria me transformar, mas não conseguia evitar: um adulto, uma vida infeliz, pêlos crescendo por todos os lados, uma mentira e um caminho sem volta. Cada ano que passa me sinto mais perto da morte e nada além disso. Tenho a sensação de que tudo isso vai acabar logo e que não precisarei me preocupar mais. Primeiro eu achava que não iria passar dos 23 anos. Mera ilusão, queria morrer como um Ian Curtis, mas não tive coragem de arrancar minha própria vida. Não sabia de muitas coisas ainda, a esperança ainda tinha pulso.
Fui o bom moço da família, estudioso, educado, criado pela avó. Minha tia morreu semana passada e quando as pessoas, que a conheciam, vinham me cumprimentar me diziam: ela tinha orgulho deste sobrinho. Mas não sinto orgulho de mim mesmo. Sei que no fundo sou um preguiçoso, fracassado, sem futuro, que não tem nenhuma habilidade aparente. Tento esconder isso através de uma máscara distorcida que não reflete meu ser, ecoando em risadas falsas e sorrisos amarelos. Sou mais amargo que aparento, mais infeliz que gostaria. É como quando fingia que estudava, mas que na verdade lia uma revista em quadrinhos que estava no meio dos livros da escola.
Já fui o bom moço, o bom namorado, o bom filho, o bom genro. Leio livros nos ônibus para mostrar às pessoas que sou culto, dou esmolas a quem me pede, não jogo sujeira nas ruas, não dirijo embriagado, não falo palavrão, não suborno, não omito, não maculo. Servi ao exército como bom cidadão; aprendi novas posições como se espera do bom amante; fui o fair-play do time; fui um doente para que tivessem pena de mim; fui o filho sábio a zelar pela casa à espera dos pais; fui o estagiário competente alternando funções; fui o bom amigo sempre com o “deixa-disso” na ocasiões mais próprias; fui o aluno obediente a aceitar o que o professor diz; fui o músico compenetrado a tocar a mesma nota ao infinito; nunca usei drogas; não roubei, não matei, não pequei; já fui o traído, o coitado e o conformado. Fiz todas fantasias, e essa é a palavra: fantasias. Meu verdadeiro eu escondeu-se embaixo de mil carapaças, protegido de tudo e de todos.
De hoje não passaria, aquela conversa iria acontecer. Eu precisava me ouvir. Toda minha vida foi uma encenação. Sempre me passei por McCartney, mas morro de vontade de ser Lennon. Este exorcismo deveria ter sido feito há anos atrás. Uns dez anos. Minha primeira camiseta de banda comprei aos 20 anos. Semana passada vesti minhas primeiras calças rasgadas. Quisera ter eu os 10 quilos a menos que eu tinha há 10 anos atrás, mas isto se torna cada vez mais difícil. Tudo que me resta é ser um delinqüente, aquele que por tantos anos eu mostrei desprezar. Por muito tempo tudo que eu esperava era a pena das pessoas. Agora, qualquer outro sentimento me serve, ódio, indiferença, desprezo, qualquer um, menos pena.
Quis me libertar, dizer o que pensava, não reprimir meus sentimentos. Mas sempre tive medo de represálias, de olhares inquisidores, da atenção redobrada. Não preciso de braços à minha volta, não preciso de drogas para me acalmar. Nunca consegui me expressar, nunca pude plenamente. Não quero mais ser quem eu sou e está muito tarde para voltar atrás.Tudo foi dito, a gaveta está vazia e tornará a ser fechada. Talvez eu me surpreenda, talvez eu surpreenda a todos. Resta a dúvida: a fácil escapatória em uma fina lâmina de barbear ou o grande estardalhaço envolvendo pólvora, buracos e um circo armado de madrugada.
Olhei para a cama e você parecia dormir. A onda de amor que me invadiu foi tão intensa que quase doeu. Eu quis te abraçar, alisar seus cabelos e ficar olhando para seus lábios, esperando que eles se abrissem em um sorriso e formassem as covinhas que me conquistaram desde a primeira vez que nos encontramos.