28 junho 2005

Quando o show não continua

Como todo ser humano, eu já fui um pecador. Eu mal tinha feito quinze anos, quando os McRay se mudaram para uma fazenda de trigo nos arredores de nossa cidade. Ianques, vieram se esconder no meio do Kentucky para fugir da balbúrdia crescente das metrópoles que, no início dos anos 1970, eram só agitações e violência. Hereges.

Os contornos eram os de qualquer família americana: pai, mãe, filho adolescente jogador de futebol e filha ainda com dez anos incompletos. Pareciam simpáticos, receptivos, tementes ao Senhor. Hah! Pouco sabia eu dos vícios que traziam daquelas terras inóspitas de ateus e prevaricadores! Steven, o pai, morreu meses depois, de cirrose hepática. Janeth consolou-se muito bem nos braços do negro Abe, que cuidava dos animais e da plantação – tiveram até mesmo a ousadia de irem juntos à igreja, num feriado de Ação de Graças! Por sorte o povo justo de minha cidade os repeliu, com tanta propriedade que menos de um mês depois o casal rumou para o Norte, levando a pequena Josie que, segundo soube, teve seu primeiro filho antes dos 17 anos... e com um latino.

Jonathan não poderia ter fugido à regra. Corria em seu sangue toda a podridão e desvario de seus pais, como eu poderia ter esperado que ele fosse diferente? Ainda assim, jovem e inexperiente, encantado pelas histórias que o garoto dois anos mais velho que eu me contava do mundo além da mansidão do condado de Wayne, fui me entregando mais e mais a ele, seguindo seus conselhos, imitando seus maneirismos e gírias, usando as mesmas roupas... transformando-me em seu seguidor, como se ele fosse o caminho para um mundo mais pleno, onde a vida ao menos parecesse ter algum motivo. Não demorou muito até que essa entrega... ultrapassasse os limites da admiração... e chegasse ao físico... numa noite estrelada... sobre os montes de feno... onde eu o recebi... como parte inseparável... de mim...

Eu estava a seu lado quando sua mãe foi expulsa da igreja, e voltei com eles na dolorosa caminhada até a fazenda. Mal tínhamos andado dez minutos, quando a caminhonete de meu pai bloqueou a estrada, carregada de outros que queriam remover aquela chaga do seio da cidade com as próprias mãos. Eu me coloquei entre eles e minha nova família com tanta veemência que tudo ficou claro para todos e meu pai ali mesmo me renegou, dando-me as costas para todo o sempre.

Quando voltei a mim, percebi que Janeth chorava nos braços de Abe, que olhava fixo para o chão, tendo a pequena Josie agarrada a uma de suas enormes mãos. Jonathan olhava para o horizonte, impassível. Dei um passo em sua direção, mas ele não se moveu. Foi somente quando eu pus a mão em seu ombro que, num golpe rápido, ele prendeu-me numa chave braço e deu vazão à sua fúria, como um leão em pleno ataque: “Você não podia manter essa sua língua suja dentro da boca, seu idiota?”, vociferou, antes de me empurrar para o chão e ordenar aos demais que seguissem em frente. Sem me levantar, derramei uma única lágrima, muito grossa e lenta, que pairou no meu queixo enquanto eles se perdiam na distância e depois caiu sobre uma pedra da estrada, desenhando em sua superfície arredondada um ponto de interrogação.

Fugi com o circo que passava pela cidade vizinha naquela mesma noite, e tudo o que soube de Jonathan é que pouco depois da partida de sua mãe, vendeu tudo e nunca mais foi visto. Mr. Rockmore, um fervoroso servo do Senhor, pai de cinco filhos, todos parte da trupe, ao saber de minha história, me fez ler a Bíblia todas as noites... e líamos com fervor redobrado sempre que cometíamos algum deslize... quando sua mulher estava indisposta... ele dizia que já estávamos salvos, e que sem dúvida seríamos perdoados... e foi o mesmo que me disse Stan, seu filho mais velho... e três dos nove palhaços... e o tratador de elefantes... e um dos motoristas... e o domador de leões, cuja atuação me fascinava tanto que ele me tomou por aprendiz. Quando envelheceu e precisou deixar o circo, ninguém contestou a passagem do chicote para as minhas mãos. Afinal, jamais tinham visto alguém tão sem medo, tão audacioso em suas performances, tão íntimo das feras entre um espetáculo e outro.

Entre estalos e rugidos, a década de 1970 e os nomes e rostos de Wayne foram ficando para trás. Talvez a única reminiscência sejam meus animais machos, todos batizados de Jojo. E foi com Jojo VI que treinei o número que apresentaria em Tucson, Arizona, naquela noite: uma corajosa chave de braço no pescoço do bicho, totalmente desarmado.

Seria nossa primeira cidade grande em muitos meses, depois do fiasco de San Francisco, em que um grupo de ativistas do PETA interrompeu nossa apresentação e tentou soltar vários animais. Que mais esperar de uma cidade onde a iniqüidade acontece às claras, com todos aqueles clubes de sexo, todas aquelas casas noturnas onde homens seminus dançam como possuídos e se irmanam em seu suor, saliva, e demais fluidos... Antros! Foi um custo convencê-los de que não maltratávamos nossos bichos, que eles eram mais amigos durante as longas viagens que meros... instrumentos de nosso ofício. Afinal, éramos todos bons homens e mulheres de D-us.

Eu o vi logo na terceira fila, junto ao corredor principal. Jonathan McRay. Bem-tratado pelos anos. Uma onda intensa de ódio somou-se à tontura que me roubava a firmeza das pernas quando a mulher loira ao seu lado se inclinou para colocar pipocas em sua boca, com um beijo de esposa feliz. Sim, esposa, porque o garoto ao lado dela tinha indiscutivelmente os traços dos dois. O apresentador gritou meu nome e eu sorri mecanicamente, e vi em seu rosto que ele me reconheceu. Pela próxima hora, seus olhos ficaram fixos nos meus.

Quando chegou minha vez de tomar o palco, dei o melhor de mim, e nunca fui tão aplaudido. Exibi-me para ele, e fiz questão de gritar o nome de Jojo, para que ele ouvisse e entendesse. Nos bastidores, Stan veio me cumprimentar pelo sucesso, mas eu mal pude entender o que dizia. Jonathan estava parado mais à frente, próximo a um dos trailers.

Todo o meu ser parecia prestes a entrar em colapso quando fui me aproximando dele – era impossível coordenar os movimentos mais simples, era impossível falar, enxergar direito, respirar. Trinta anos de emoções e perguntas represadas, trinta anos de noites mal-dormidas ou entregues a outros que jamais teriam aquilo que nós tivemos, três décadas de ódio, culpa, medo e desejo – um dique emocional malfeito tentando represar um oceano.

Antes, porém, que eu tivesse a chance de saber qual dessas emoções me dominaria quando eu falasse com ele, o caos adiantou-se, tomando a forma de um homem desesperado que chegou-se a ele aos gritos de “Reverendo, Reverendo, seu filho!”. Nem bem os dois correram dois passos quando os gritos se multiplicaram numa cacofonia de horrores, no meio da qual eu distingui aterrorizado a palavra “leão”.

Todo o resto foi um borrão de acontecimentos indistintos e vertiginosos, como sói acontecer em tais circunstâncias. Num descuido da mãe, a criança aproximou-se demais da jaula e Jojo VI, que mesmo com os demais de sua espécie era arisco, tratou de eliminar o incômodo da maneira mais rápida possível.

Quando cheguei o menino ainda se debatia, mas em um chacoalhão todo o seu corpo amoleceu, ficando inerte como um pedaço de pano pendurado na bocarra do rei dos animais. Jonathan, naqueles primeiros segundos, estava totalmente em estado de choque. A mãe, desmaiada, principiava a ser socorrida. Ninguém se atrevia a chegar perto da jaula, agora com todos os outros animais agitados por causa do cheiro do sangue.

Era preciso fazer algo antes que o corpo todo do garoto se perdesse. Foi aí que Jonathan gritou meu nome. Saquei a pistola enquanto olhava firme em seus olhos, e meu corpo virou-se na direção de Jojo sem que meu rosto acompanhasse o movimento. Quando o fez, foi para encontrar a visão que jamais me deixará enquanto eu viver: o olhar do bicho era o mesmo do pai da criança. Pedia a mesma coisa. Tinha a mesma urgência.

E o tiro, o único, foi certeiro, no lugar exato onde Caim teria carregado a marca por ter matado Abel.

Na delegacia, depois dos depoimentos, depois dos repórteres e dos curiosos e dos ativistas, nos deixaram por um momento a sós em uma sala com dois sofás e uma mesinha. Os minutos de silêncio foram secos, lentos. Não nos olhamos. Súbito, ele se levantou, e eu achei que iria embora e tudo ficaria assim, até que nos encontrássemos novamente... se nos encontrássemos novamente... mas ele caminhou em minha direção, sentou-se ao meu lado e me encarou longamente, o canto de seus lábios tremendo, até que conseguiu dizer:

“Sinto muito”.

“Eu sei”, respondi, e enquanto ele caía em um pranto longo e convulsivo, abracei-o e aninhei sua cabeça em meu peito, acariciando-lhe suavemente os cabelos cheios, de um loiro avermelhado onde já apareciam alguns poucos fios brancos.

“Eu sei, Jojo, eu sei.”

1 Comments:

Blogger Fernanda Ribeiro said...

...
tah faltando um texto lah em cima!!!
este é ótimo... mas e o outro?

00:43  

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