17 novembro 2005

O Espelho Circular

Durante minhas férias, programei uma viagem de estudo às terras do oriente, onde tive a oportunidade (o prazer) de hospedar-me em tal casa antiga, que só o cheiro do local já trazia o sentimento de milhares de anos de história. Não vou saber precisar bem a cidade, mas como muitas, era cercada por tal desertificação que mantinha a comunidade unida na sua luta contra sua própria natureza. Um povo hospitaleiro, o qual conseguiu tranqüilizar meu medo de enfrentar tal civilização que tem uma face tão dura, marcada por tantos fatos milenares. Arriscando meu hebraico enfadonho, consegui me comunicar e com o tempo pude produzir diálogos interessantes e instrutivos com os quais pude elaborar um suposto guia de viagem sobre aquela região. Não estive só em minha ilíada em língua estranha. Um americano, Richard Adams, que hospedava-se em quarto vizinho, e que também viajava com os mesmo propósitos que eu, teve a mesma dificuldade, para se fazer entender. No fim do corredor, encontrava-se Lisaveta Ivanovna, russa, porém versada em diversas línguas, inclusive na hebraica. Lisaveta foi muitas vezes nossa salvação.

Várias vezes sentávamos nós três na sacada, eu apresentando meu melhor inglês macarrônico que pude aprender, comentávamos sobre a vastidão das culturas existentes e nossa petulância perante milhares de anos que nos cercavam em querer colocar um mundo em poucas páginas. Especulávamos também a dificuldade das pessoas diferenciarem indivíduos de raças diferentes. Adams, dizia que todos os japoneses, além de serem uns filhos de umas putas, eram todos feitos da mesma merda. Certa vez, a questão que presenciamos no local também foi abordada, pois para nós todos daquela região eram parecidos. Adams afirmava que Abraão, dono do lugar onde estávamos hospedados, tinha trepado com todas as mulheres da cidade e por isso eram todas as crianças parecidas. Talvez envergonhada pelo vocabulário de Adams, Lisaveta retirou-se, alegando cansaço. Retorna a meus ouvidos as simples, mas eficientes palavras de Adams, o qual costumava a se referir a Deus como "the biggest son of a bitch", o qual era culpado por toda essa merda que estava ali. Contradizia-se, já que alegava ser ateu. Muito influenciável que sou, comecei a usar muito de suas gírias, em especial "son of a bitch" e "fuck". Muitas vezes tive que me policiar em frente a Abraão, evitando vocabulário que de alguma forma pudesse ofendê-lo (mesmo que ele não soubesse o inglês, poderia identificar tais palavras). O americano não se constrangia, e pude notar que Abraão não o suportava, mas o tolerava pelo bom dinheiro que pagava pelo quarto. A arrogância de Adams, somente tolerada por mim (não só pelo fato de eu ser muito paciente, mas por me sensibilizar com tais personas que não tem nada além de sua própria altivez) contribuiu para me aproximar de Lisaveta, por quem me enamorei desde o primeiro momento.

Adams não se demorou para ir embora, alegando precisar concluir sua pesquisa até o fim do ano, e muitos lugares ainda esperavam por sua visita. Deixou-me seu endereço em New York o qual nunca visitei e, se não me engano, já não tenho mais. Lisaveta também não se demorou, iria voltar à sua terra para terminar seus estudos, porém, prometemo-nos manter contato. Conquistado pelo clima da região e pelo ambiente amigável, decidi prolongar minha estadia por lá. Minha amizade com Abraão intensificou-se com a partida de Adams e Lisaveta. Meu medo de ser um estrangeiro solitário fez-me agarrar no primeiro galho do penhasco que visse pela frente. Abraão, com muita simpatia aceitou ser esse suporte. Minhas conversas na sacada com Adams e Lisaveta, foram substituídas por longas histórias contadas por Abraão. Na minha gula por traduzir tudo que ele dizia, não me coordenava em falar; apenas ouvia. Isso conquistou a simpatia de Abraão, homem de largos gestos, comunicativo e, como aprendi, que não gostava de ser interrompido.

Certa noite ele se enveredou na história de um espelho de forma circular, obra de Solimã, filho de Davi - seja salvação para ambos! -, cujo preço era muito elevado, pois era feito de diversos metais e aquele que olhasse em seu cristal via o rosto de seus pais e de seus filhos, desde o primeiro até os que ouvirão a Trombeta. Imediatamente calou-se, envergonhado, parecia ter falado mais do que devia. Tentei tranqüilizá-lo com meu parco hebraico, jurando-lhe de que tal revelação (a qual quebro agora por motivos que todos entenderão) não constaria em nenhum relato meu sobre esta viagem. Sensibilizado com tal juramento, ele prometeu-me mostrar um tesouro que escondia, e só o faria pois notava o meu esforço por agradar-lhe. Levou-me até a sala de estar da casa e pediu-me que o esperasse ali. Ele sumiu por uma outra porta e por alguns instantes pude ouvir o som de grandes móveis sendo arrastados. Logo ele reaparece trazendo nas mãos um largo objeto enrolado em um pano verde. Pediu-me que jurasse mais uma vez manter isso fora de meu relato, o que o fiz sumariamente. Tirou o objeto de dentro dos panos e o depositou sobre a mesa. À primeira vista não passava de um espelho comum do qual não me preocuparia em gastar mais que 5 dólares para tê-lo.

- Este, meu amigo, é o espelho de que lhe falo; o espelho de Solimã, filho de Davi, sobre o qual lhe direi a história. Nos primeiros dias, havia no reino dos andaluzes uma cidade na qual residiam seus reis. Nessa cidade existia um forte castelo, cuja porta deveria manter-se fechada. Cada vez que um rei herdava o trono deveria colocar, com suas próprias mãos, uma fechadura nova na porta. Nela somaram-se 24 fechaduras, até subir no trono um homem diabólico que não pertencia à casa real e que ordenou que as portas fossem abertas. Muitos tentaram persuadi-lo de tal empreitada, mas sem sucesso. Com sua mão direita (que arderá para sempre) abriu a porta do castelo e inspecionou seus aposentos, dentro dos quais muitos tesouros foram encontrados, inclusive este o qual lhe mostro agora. Porém na parede final de uma longa sala encontrou a inscrição que dizia "Se alguma mão abrir a porta deste castelo, os guerreiros de carne que se parecem aos guerreiros de metal da entrada tomarão o reino". Antes do final desse ano, Táric apoderou-se dessa fortaleza, derrotou esse rei, vendeu suas mulheres e seus filhos e assolou suas terras. Assim foram se expandindo os árabes pelo reino da Andaluzia. Talvez a história não lhe revele muito sobre o espelho, mas a forma como foi encontrado me diz muito. E além disso, é tudo que sei.

Mantendo interesse com o qual ouvia todas suas histórias, o encarava sem surpresas.

- Teu rosto incrédulo parece desafiar-me, o mesmo ocorreu com um outro viajante que o encarou, e te digo: se duvidas, experimente-o.

Assim o fiz e tudo me pareceu a mais límpida verdade. Vi o primeiro Adão, percorri todos meus antepassados que um dia ocuparam os Pirineus para depois se deslocarem para a região central da África em busca de diamantes; vi meus avós de séculos passados em suas cruzadas inúteis; vi desbravadores em um novo continente selvagem e então vi eu, e somente eu.

Falei o corrido para Abraão e suas notícias não eram agradáveis. O espelho não mente jamais e isso significava que eu era último de minha linhagem. Muito poderia se deduzir disto, talvez até uma morte prematura me aguardasse na próxima viagem. Assombrado pelo meu futuro incerto parti em direção à Rússia, deixando a terra hospitaleira de Abraão, o qual me fez jurar mais uma vez manter nosso segredo.

Chegando em São Petersburgo procurei por Lisaveta e a pedi em casamento, eu não tinha mais nada a perder; e não perdi. Em pouco tempo veio a notícia que me tirou um grande peso da alma: Lisaveta estava grávida. O espelho era falso? Seria Abraão um charlatão tentando aproveitar-se da minha credulidade conquistada em longas noites de histórias? Nada mais importava, a linhagem Forlon continuaria.

Sete anos depois, vendo meu filho correr pelo gramado de minha casa lembro de Adams e balbucio:

- Mas esse filho da puta é a cara de Abraão.

1 Comments:

Blogger Loco lá da fronteira said...

Espelho fdp... Abraão fdp... HEHEHE. Ótimo texto!

10:42  

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