25 novembro 2010

Esculpido em carrara

Esculpido em carrara

Há trinta anos Nestor procurava no filho traços que apontassem qualquer semelhança consigo. Nas linhas do rosto reconhecia a doce genética materna, que, por sinal, no rapaz não caía bem, sendo que não havia nele qualquer outra característica que julgasse familiar. Nada no filho reconhecia como seu – idéia com a qual, na verdade, no todo não lhe desagradava, a não ser pelo inconveniente de ser chamado de pai.

Nestor tinha pele clara, cabelos e olhos castanhos. No rosto sobressaia-se o nariz, que em que pese não fosse grande, possuía linhas duras, o que, em conjunto com as sobrancelhas grossas, conferia-lhe um ar soturno. As mãos e os pés eram grandes, os ombros largos, as canelas finas e as pernas grossas. Era um homem de estatura mediana, pouco acima do peso para sua idade.

Marcelo tem olhos finos, e nariz pequeno. A pela é mais escura que a minha. O rapaz é muito alto, possui costas estreitas. Destoa muito do fenótipo da minha família. Certamente, não é meu filho. Pensava.

Acabrunhava-se, ainda, o suposto pai com o gênio do filho. Achava que nenhum atributo de personalidade havia sido herdado, tampouco adquirido ao longo dos dezenove anos de convívio familiar.

Para bem da verdade, por motivos que sequer compreendia, Nestor sempre desdenhou do filho.

Quando recebeu da esposa a notícia da gravidez não se comoveu. Ao escutar a frase Estou grávida, não sentiu nada de extraordinário. A impressão vivenciada foi similar à mais corriqueira das sensações, como se algo prosaico estivesse sendo dito, tal qual “precisamos fazer compras”, ou “a calha está novamente entupida”. Comovera-se, contudo, com as lágrimas nos olhos da mulher, razão pela qual acreditou que os sentimentos inerentes à paternidade chegariam ao seu tempo.

Na maternidade, ao ver o filho pela primeira vez, fora acometido de uma inexplicável náusea, dores estomacais e arrepios na espinha. Era nojo o que sentia. Com o passar dos anos foi dominando os inoportunos mal-estares, de forma que quando Marcelo completou cinco anos viu-se apto às praticas paternais, tais como os jogos de bola e pescarias mensais.

Entretanto, quando levava o filho à cama e o via adormecer, analisava a respiração da criança, o tremer de lábios, os pequenos gestos noturnos e sempre de asco era tomado.

Quando o filho completou dez anos resolveu procurar ajuda especializada. E após superficialmente transitar entre psicólogos e psiquiatras, que nada de concreto diziam, resolveu seguir o conselho obtido à porta do confessionário: Amar ao próximo como a si mesmo é dever de todos os homens na Terra, meu filho. Cumpra seus deveres de pai e reze dez pai- nossos e dez ave-marias.

As ave-marias e pai-nossos passaram a compor a rotina de Nestor que a cada dia certificava-se de que ainda não amava o filho. As orações diariamente eram feitas ao acordar, antes de dormir, e, ainda, em períodos alternados do dia quando se via pensando fixamente na hipótese de abondanar a esposa para nunca mais ver, ou mesmo ouvir, qualquer menção ao filho.

E durante anos o homem lutou com todas as forças contra o absoluto desdém sentido pelo filho, o qual jamais foi dominado.

Para Marcelo, jamais faltou o carinho materno e o auxílio material paternal. A indiferença com qual o filho foi tratado pelo pai ao longo da adolescência uniu mãe e filho e afastou Nestor da relação familiar.

A pertubação de Nestor com o passar dos anos se avolumou, sendo que durante o dia eram por ele revezados os sentimentos de culpa, desprezo e arrependimento por um dia ter se tornado pai.

Quando completou 49 anos, esposa e filho fizeram as malas. Não houveram despedidas. E longos anos de alívio se passaram. As ave-marias e pai-nossos, por precaução foram mantidos. Na conta da esposa Nestor depositava mensalmente metade do salário recebido como agente ferroviário.

Nestor sentia que a ausência do filho só lhe fizera bem. O homem recuperava sua humanidade. Era capaz de amar pessoas, realizar gentilezas, fazer amigos.

Aos 59 anos seus pensamentos voltaram a reincidir no filho. Pensava que o rapaz, agora com 29 anos, deveria ter acentuado a atroz dessemelhança.

Em uma noite o telefone de Nestor tocou e, antes de atender, pôde sentir um arrepio lhe correr a espinha, acompanhado de uma forte náusea. Alô, Nestor, escutou a voz da esposa, ontem Marcelo se tornou pai.

Aos 60 anos o homem tornara-se avô.

Nestor vislumbrou a possibilidade de se redimir. De amar ao Neto como não amara ao filho. Depois de muitos anos, dormiu e acordou sem rezar.

Feitas as malas, partiu ao encontro do filho. Após tocar a campainha pode ver Marcelo se aproximar, quando percebeu semelhanças físicas nunca antes vislumbradas: os cabelos, a barba fechada, o timbre de voz, o andar firme. Os braços estendidos ao filho não chegaram a lhe alcançar. Pode sentir um forte calor no peito acompanhado da perda da audição. A visão se fechou. O corpo desabou no chão, fazendo ranger todos os cômodos da casa.

Velho maldito. Ainda não posso amar meu filho.

3 Comments:

Blogger Mac said...

Ótimo retorno, Fernanda.
Gostei do texto machadiano (a meu ver). Posso citar uma série de nuances que me atraíram, como a descrição da culpa, a contagem dos anos e o final angustiante.
Às vezes penso que nunca conseguirei ser um pai que ama o filho. Muito bom o texto, realmente mexeu comigo.

23:37  
Blogger Renan Espinoza said...

Dexter.

07:02  
Blogger Fernanda Ribeiro said...

Isso foi um comentário ao comentário do Mac?

17:39  

Postar um comentário

<< Home