21 julho 2005

I will surprise you sometime

“Lucas, filho, aqui é Tia Teresa. Estou ligando porque Patrícia deixou uma carta endereçada a você, e pediu que você, somente você, a abrisse. Sei que anda muito ocupado, filho, mas se puder vir até em casa para buscá-la agradeceria muito. Um grande beijo, Lucas. Até logo.”

Lucas ouvia a mensagem pela segunda vez na tentativa de encontrar algum indício de uma possível confusão de Tia Teresa. Nada. Era com ele mesmo que ela falava, ao chamar-lhe filho, mesmo que não fosse nem sua tia. A vida compartilhada no sufocante conjunto de apartamentos havia legado essas denominações todas. Mas agora, cinco anos passados que já não mais morava ali, o jovem não conseguia entender o que Tia Teresa, muito menos Patrícia, poderiam ter para lhe dizer. E não suportava a idéia de voltar para a antiga casa, nem por um momento sequer. A mescla de sofrimento e arrogância que tomavam conta de Lucas ao lembrar do que havia passado ali o remetia a um passado que rezava todas as noites para ver morto e enterrado.
Impelido mais pela curiosidade do que por qualquer outra coisa, Lucas se deixou vencer.

Naquela mesma tarde de sábado, o movimento do elevador imundo aliado ao cheiro de sua infância fez com que Lucas fosse tomado por uma vertigem insuportável. Escorou-se na parede para não cair ao mesmo tempo em que segurava a cabeça com as duas mãos implorando para que aquele mal-estar fosse embora logo. Quando chegou ao sexto andar, já sem cor, Lucas relutou ao sair do elevador. À esquerda, no 62, Patrícia e Tia Teresa. Logo em frente, no 61, o pequeno, o adolescente e o jovem Lucas, a mãe já falecida e o abandono do pai.
Lucas, que agora já era um executivo bem-sucedido apesar da pouca idade, não conseguia compreender por que voltava a sentir-se como aquele adolescente ensimesmado de outros tempos. Sendo o que era, ou no que havia se transformado, o pensamento ocorreu-lhe por segundos, antes que Lucas o afastasse rumo ao 62.

Apertou a campainha. Culpa Tia Teresa não tinha nenhuma, mas sim as memórias que o nauseante odor que lhe escapava traziam ao jovem. Esforçando-se sobremaneira para não parecer demasiado rude, Lucas deixou claro uma vez mais que “andava muito ocupado” e evitando bobagenzinhas “como vai Denise, que tal o novo emprego, que bonito homem tornou-se” recebeu das mãos da velha um envelope grande, já um pouco amarrotado, em que se lia apenas “Mamãe, este envelope é para Lucas. Por favor, entregue em mãos – Patrícia”.

Dentro do envelope, dois outros menores. Em um deles lia-se “Este primeiro”, no outro “Surpresa?”
Lucas aceitou a recomendação de Patrícia mesmo não sendo capaz de afastar da memória o meigo apelido pelo qual os moradores do prédio costumavam se referir a ela: “sinistro espectro facínora”, ou na versão resumida, se por ventura ela estivesse presente, “SEF”.
Abriu o primeiro, encontrando uma chave e o bilhete que começou a ler ansiosamente, arrependido por ter se rendido ao que aos poucos se desenhava uma pequena farsa em que ele interpretava ninguém mais do que o protagonista:

“Guardei algumas coisas suas na segunda gaveta da cômoda à esquerda. Assim que abri-la, leia minha carta no outro envelope. Esperava entregar-lhe em mãos, meu amor...

– Q-QUÊ?

...mas acho que fomos longe demais. Despeço-me como sempre: grande beijo da tua adorada Patrícia”

- Lucas, tudo bem, filho? – Sobressaltada pelo grito do jovem, Tia Teresa veio correndo da cozinha onde havia ido preparar um café.
- N... na.. não, tudo bem, Tia, senti uma pontada aqui, deve ser porque exagerei no almoço. Escuta, preciso ir ao quarto de Patrícia, se a senhora me permite, ela pede aqui que eu recolha algumas coisas que supostamente são minhas.
- Tudo bem, filho, não é de hoje que a casa é sua.

Detestava sentir-se íntimo daquela gente, assim como detestava quando sua mãe ia desabafar todas as ruindades que o pai de Lucas fazia nos ouvidos de Tia Teresa.
Perdera a conta das vezes que brigou com a mãe porque “ela insistia em confiar naquela gente estranha”, mas era incapaz de evitar um “olá, bom dia” e principalmente o incômodo olhar profundo de Patrícia que aos seus olhos lhe desvendava a alma, “maldito SEF asqueroso”.
Mas aquela agora? “Meu amor?” “M-E-U A-M-O-R???”
Ao abrir o quarto de Patrícia sentiu um arrepio a percorrer-lhe a espinha. O ar parado, a ausência de luz, o bolor... quem não soubesse que a garota estava viajando há apenas dois dias certamente pensaria que ali nunca residira viva alma.
Levou a mão ao nariz a fim de acostumar a respiração àquela atmosfera funesta. Entre a opção de render-se à curiosidade despertada pela bizarrice da cena e a vontade de sumir logo dali, Lucas escolheu a segunda.
Antes de abrir a malfadada gaveta, tenso por não saber o que iria encontrar, Lucas abriu o segundo envelope.

“Amor de minha vida – Lucas fechou os olhos, respirou profundamente e contou até dez para seguir adiante com a leitura – desde o dia em que se declarou a mim, venho guardando as pistas que me deixa. Lembra, meu amor, daquele dia? Eu lembro como se fosse ontem. Eu subia as escadas, você como sempre estava com seus amigos, tínhamos treze anos, claro que você se lembra... eu como sempre estava sozinha. Vocês costumavam fazer aquelas brincadeiras horrorosas comigo quando faltava a luz e eu tinha que subir os seis andares, sempre, sempre me assustavam, os malvados. Hehehe. Até que aquele dia você me abordou, na escuridão eu reconheci o brilho dos teus olhos, e me deu aquele beijo inesquecível.”

Lembrou-se. Os moleques haviam apostado em conjunto no que chamavam de “prova imbatível”. Era a tarefa mais dificultosa de todas, a mais hedionda, grotesca, que exigia extrema coragem de quem a cumprisse, e que já durava dois anos sem que ninguém conseguisse vencê-la: beijar SEF. O audaz ganhador seria brindado com a notícia de que era o primeiro homem a comer uma mulher - assim, comer mesmo - sendo espalhada por todos os andares do prédio, o que certamente lhe daria fama para trepar com todas as moradoras do edifício. E assim foi, Lucas bem o sabia.

Voltou à leitura.

“Lucas, a partir de então, meu amor, sabe tanto quanto eu que fomos feitos um para o outro. E eu te conheço tão bem, Lucas, sinto muito que nunca tenha conseguido me dizer com todas as palavras o quanto me ama. Mas fique tranqüilo, meu amor, pelo tamanho do que sinto por você, sei o que sente por mim.
Na gaveta, Lucas, você vai encontrar as fotos dos momentos mais memoráveis da sua vida, aqueles em que gostaria que eu estivesse presente para compartilhar contigo. Cartas que escrevia pra mim e não tinha coragem de me entregar, livros que gostaria que eu lesse... aliás, seu bobo, não fosse Patti, uma clara referência a mim no “Mate-me por favor”, quase levo a cabo o título do livro, pois sabia a angústia que vivíamos ao não consumar esse amor sempre tão perto, tão longe... escapou por pouco, viu? Precisei refletir bastante para compreender a mensagem que se escondia ali... e entendi completamente ao ler “O Lobo da Estepe”, Luquinha, que explica tim-tim por tim-tim a demente multiplicidade de personagens que interpretamos o tempo todo, né?
Pelos cartões de Denise, as fotos que tirou com ela e deixou pra que eu pegasse, eu sabia que queria me causar ciúme, na tentativa de me fazer dar o próximo passo. Mas eu não podia, entende? Já era risco demais cada vez que batia à porta da sua casa, primeiro em companhia de mamãe, depois inventando desculpas esfarrapadas para puxar conversa com a sua, sempre dar um jeito de enfiar-me no teu quarto à procura dos rastros que me deixava. E você bem sabia, né? Mas eu entendo, Lucas, o amor vem atropelando tudo, nos deixa boquiabertos, sem fôlego – isso descobri pelo Aerolin, meu adorável asmático – a gente perde mesmo a noção de tempo, espaço e principalmente ação. Eu te entendo, meu amor.
Confesso que a notícia de que se casaria com Denise no início quase me causou um colapso, mas foi quando me dei conta de que havíamos ido longe demais. Causar sofrimento a uma terceira pessoa por causa de nossa paixão não é justo, né amor? Por outro lado, fez com que eu tomasse a presente decisão. Apesar da certeza do teu amor, da cegueira que o sentimento lhe causa, das intenções que tem com esse casamento, Lucas, eu não posso mais compactuar deste seu plano que começa a mostrar-se insano.
Façamos assim... você se lembra do combinado, né?
Seja forte, lembre-se de que para onde vamos a consumação do nosso sentimento é certa.
Abrindo a gaveta, você acha teu vidrinho de cianureto. O meu a essa hora já está vazio.

Vou na frente, meu amor, te espero ansiosamente. Grande beijo da tua adorada Patrícia”.