21 julho 2005

Enquanto você dormia

Olhei para a cama e você parecia dormir. A onda de amor que me invadiu foi tão intensa que quase doeu. Eu quis te abraçar, alisar seus cabelos e ficar olhando para seus lábios, esperando que eles se abrissem em um sorriso e formassem as covinhas que me conquistaram desde a primeira vez que nos encontramos.

Pela porta do quarto o garoto saía com uma expressão indecifrável no rosto, a velha mala verde equilibrada sobre o ombro direito e um embrulho aparentemente pesado pendendo da outra mão. Felipe. Esse, o nome dele. Na hora não me perguntei como ou porque eu sabia seu nome. Era tudo muito vago, estranho... Senti-me apenas que devia segui-lo, apesar da náusea, apesar da tontura.

No corredor, ainda mais revirado do que o quarto, percebi o quanto tudo estava indefinivelmente diferente. Algo no ar, na luz, nos sons. Ainda corria suor pela testa do menino, por suas costas e por seus braços, marcando a camiseta -- o odor atingia minhas narinas em cheio. Enquanto descíamos a escada analisei seus traços quase infantis. Talvez fossem seus grandes olhos castanhos e brilhantes emoldurados por cílios longos e curvados, a pele branca irradiando vitalidade, ou o buço incipiente que o faziam parecer muito mais novo que seus recém-completados vinte anos. Os braços e mãos lhe denunciavam a idade, contudo. Olhei para as pernas fortes saindo da bermuda de surfista azul e branca e terminando nas canelas grossas e peludas mal cobertas pelas meias brancas, o tênis marrom um pouco gasto: um rapaz forte, bonito, cheio de vida.

Ele tomou a direção da garagem, passando pela cozinha ao invés de seguir pela sala de estar, de onde um vento frio vinha das janelas abertas, e onde o aparelho de som ainda tocava os maiores sucessos de Sade Adu:

-- No need to argue, he's a smooth operator ...

Pensei na família do garoto, tentando imaginar como teria sido sua criação, quais valores lhe teriam sido incutidos, e inevitavelmente nos imaginei no lugar dos pais dele. Nós conversamos muito sobre filhos, eu e você, antes de decidirmos oficializar os quase seis anos de relacionamento. Achamos melhor esperar mais um pouco antes de tê-los. Eu com 31, você, 27, e ainda assim nenhum dos dois seguros da propriedade de trazer mais uma alma ao mundo, quando nem poderíamos dizer se estaríamos juntos na semana seguinte... Anderson e Solange, o casal mais invejado, mais certo e também o mais improvável: você sempre tão correto, sempre uma incontestável promessa de sucesso e eu, como qualquer mulher educada demais, sufocando desejos de viver perigosamente, querendo em você uma Thelma para a minha Louise. O que nossos agora para sempre hipotéticos filhos teriam aprendido com isso?

Nós sempre soubemos que o casamento era, no fundo, um meio de fugir da sina de nossa geração, esse amontoado de seres sem referência que viu o mundo ser catapultado da época das TVs branco-e-preto para o tempo dos celulares minúsculos multifuncionais com câmera acoplada ligados à internet por meio da tecnologia waap. A infame "geração x". Um horror, essa indefinição estranha que tornava nossas vidas – no aspecto profissional, emocional, ou mesmo nos sentidos mais íntimos e pessoais – um incômodo desfile de pseudo-potenciais. Podíamos tudo, mas nada nunca acontecia. Sabíamos, conhecíamos tão mais que nossos pais, e tão assustadoramente mais que os pais deles, e mesmo assim nunca fazíamos nada de relevante. O mundo da informação a nossos pés – ou dedos – e tudo que fazíamos era repassar e-mails em tardes de tédio no escritório... ou, no seu caso, colecionar fotos pornográficas (você achou que eu nunca descobriria a senha de seus diretórios secretos mal escondidos?).

Foram quantos anos de amizade antes de percebermos a impossibilidade de viver um sem o outro? Quinze? Mesmo antes de aprendermos a falar direito, o fantasma da mediocridade era o único desconforto em nossos poucos silêncios – ameaça surda de um inferno tão horrendo que nem Dante se atreveria a descrever; uma morte em vida nos rondando a cada nova loira que víamos surgir apresentando programas infantis na televisão.

Tínhamos que ser alguma coisa, eu e você, e uma família foi o que pareceu mais à mão. Quem sabe o milagre da maternidade não me faria, de um momento para o outro, achar um propósito qualquer nos paradoxos da condição feminina? Quem sabe, ao ser pai, você finalmente deixasse de ser o eterno único filho, mimado e reclamão? Se não nos casássemos, acabaríamos representando o mais ancestral dos incestos: eu, uma Jocasta de peitos secos para o seu Édipo com complexo de Peter Pan.

A luz fria da garagem também me pareceu diferente quando Felipe acionou o interruptor. Ele abriu o porta-malas do carro e depositou o embrulho de lençol, com cuidado, como se houvesse objetos muito delicados dentro dele. Depois começou uma série de idas e vindas, enchendo o carro como se estivesse preparando-se para viajar. Numa delas a música parou, bem quando Sade dizia:

-- In heaven's name, why are you walking away? Hang on to your love .

Outra onda de amor (amor?) por você me tomou, mas desta vez a dor foi mais do que metafórica e dobrou-me em duas. Em pânico, não conseguia mais respirar, a visão escureceu e pensei ter ficado louca – no breu em que subitamente me vi, vozes horríveis ecoavam, perto, longe, em coro, lutando para sobrepor seu desespero às demais. Eu estava alucinando? Por que estava tão frio? Do fundo de mim, antes que eu pudesse fazer algo a respeito, partiu um grito, quase um uivo, apavorante: gritei por você.

Quando voltei a mim, estava estirada por sobre os ladrilhos frios da garagem. Tudo estava silencioso, calmo, e Felipe estava parado junto a uma bancada, examinando algo atentamente. Levantei-me para ver que, à frente dele, estava aberta a mala que o vi carregar para fora do quarto.

Era sua, aquela mala, reconheci. Uma que ficava esquecida em uma prateleira do closet, e à qual você sempre recorria quando ficava melancólico: um "baú" de lembranças de sua infância e adolescência, morada de miniaturas e medalhas e revistas e uma infinidade de papéis e anotações que registravam em silêncio sua história.

Eu pude sentir a vibração de cada objeto que ele ia apanhando, e captei a reverência tranqüila com que os examinava. Lentamente sua vida passava pelos dedos cuidadosos do garoto, que parecia hipnotizado por tudo aquilo, como se aquelas recordações a ele pertencessem, também.

Felipe olhou com interesse suas fotos, uma a uma. Todos os nossos amigos, alguns muito mais seus do que meus, e com os quais nem sempre soube conviver muito bem... Jorge quis me beijar numa festa, enquanto você foi comprar mais cerveja com os outros rapazes. A rosa tingida de preto em nossa porta foi obra dele – disse que seu coração estaria para sempre de luto por mim, morta para ele ao casar-se com seu melhor amigo. Já com Reinaldo a situação foi cômica, apesar de eu ter depois ficado com pena dele. Quando, depois de meses insinuando-se, ele conseguiu encurralar-me em um abraço mais apertado, eu descobri da maneira mais inusitada que os boatos de que ele sofria de ejaculação precoce eram verdadeiros. Foi ele que me ligou três vezes numa madrugada de fevereiro, bêbado, pouco antes de separar-se da Lucíola. Seus amigos, que sempre o amaram e temeram por motivos que nunca cheguei de fato a compreender.

Uma foto minha me fez estremecer novamente. Talvez pela falta de vida da pose, que me fez pensar na personagem daquele filme de terror japonês com seus cabelos longos e desgrenhados. Uma alma penada.

Desviei imediatamente minha atenção para os bloquinhos de anotações que Felipe manuseava. Sorri de leve, pois sabia que você via em suas infindáveis anotações o germe das obras-primas que finalmente elevariam a literatura brasileira ao patamar de "grande literatura universal". Meu querido Anderson, minha alma gêmea, guardava em si o germe de um super-herói das letras nacionais, que nos salvaria da armadilha de nossas cores e costumes – nós, os bons selvagens, nós, um país de mulatos inzoneiros, nós que, em quaisquer representações internacionais, falamos espanhol e moramos todos no Rio de Janeiro! Estava em suas mãos alterar esse cenário irreal e triste. Direto de seus blocos de notas, o romance definitivo da experiência brasileira surgiria para decretar o fim da era Paulo Coelho.

Seu refinamento intelectual era tão excitante para mim quanto para você, que adorava a sensação de poder advinda da pressuposta superioridade de seus muitos argumentos. Admito que algumas vezes cedi apenas para vê-lo inchar-se todo sob um influxo de testosterona, o macho-alfa com um Q.I. digno do Mensa. Nossas melhores transas quase sempre vinham depois de discussões-cabeça.

Junto às suas notas estavam os poucos exemplares que sobreviveram de suas coleções de quadrinhos. Por um momento me arrependi de ter sido inflexível com relação a elas. Sua fisionomia até mudava toda vez que tocava nesses assuntos – sua voz ficava mais alta e intensa, os olhos com um brilho diferente, e você gesticulava feito um doido, falando sem parar sobre universos paralelos. Eu gostava, achava bonitinho, e me fazia feliz vê-lo feliz. Passávamos horas discutindo sobre violência e o papel da mulher em fábulas hiper-machistas. Era interessante ouvi-lo argumentar que a cueca por fora da calça colante era uma forma de contornar a hipocrisia da nossa sociedade que não se admite falocrata: o homem pode ser "super" em tudo, menos explicitamente naquilo que faz dele um homem, no sentido biológico.

Por fim, apareceram na mala os livros da sua vida, a "Coleção Anderson de Clássicos da Literatura". Apesar de sua insistência, não li nenhum deles. Sei da importância de cada um para a sua formação, mas a mim bastava adivinhar-lhes o conteúdo pelos reflexos em suas atitudes. Aquele ar que você assumia ao citar algum deles para encerrar nossas conversas deixava claro que, para você, eram verdades absolutas, incontestáveis.

E havia uma ficha. Solitária, anacrônica, enigmática, tão insignificante mas tão carregada de significados que ficamos, Felipe e eu, como que absorvidos por ela, irmanados numa contemplação muda e expectante, como se houvéssemos mesmo ligado para algum lugar e ficado, de alguma forma, congelados no instante que antecede o sinal de chamada ou de ocupado. Suspiramos em uníssono. Ele foi ainda uma vez para a sala e voltou com a mala carregada de alguma outra coisa, pesada, pelo jeito. Entrou no carro, deu a partida e foi embora.

Não foi muito depois que você apareceu, com o ar desolado e confuso de quem acaba de acordar de um longo sono, e sentou-se ao meu lado, me abraçando. Assistimos em silêncio ao nascer do dia, e vimos quando os primeiros vizinhos chegaram, primeiro intrigados com as portas escancaradas, e depois aos gritos e em pânico quando encontraram meu cadáver junto à porta da sala, e o seu sobre a cama, ambos desfigurados pelas muitas facadas desferidas pelo assaltante-menino.

Nada parecia nos dizer respeito. Adormecemos nos braços um do outro e, quando acordei, já estávamos aqui.

Com eles.

Sei que olhar para eles dá medo, mas eles disseram que podem nos ajudar, se lhes fizermos um pequeno favor.
Parece que o Felipe fez um acordo com eles e não cumpriu...

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Nossa Lú.......maravilhoso!! Parabéns, adorei o texto. Meu coração bateu até mais forte no finalzinho....rsrsrs. Beijos...

08:40  

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