28 setembro 2005

Nas Entranhas

O coração batia acelerado. A capa plastificada, o número catalográfico. Pequenas orelhas de burro, sucesso eram o que significavam. Era lida, muitas vezes, remexida. E a cada nova cópia que dela se produzia, por oito mãos passava. Mas guardava, ainda assim, seu perfume.

Adquirira, é verdade, algum cheiro de mofo. Ocorre que a biblioteca tivera, há dois anos, problemas de infiltração, o que acabou prejudicando a aparência do material, mas as folhas eram aquelas, nelas havia tocado, guardado as impressões do lugar, nas entranhas do papel as percepções daqueles dias. Aqueles dias. Nunca mais esqueceria.

Foi assim: Do outro lado da linha telefônica a voz grave-fina do rapaz. A velha professora de português atendera, sorte a dele, ela não andava para telefonemas nos últimos tempos. Não sabia porque, não queria, mas acabou atendendo por descuido, por reflexo, talvez.

Sim?

Olá, tudo bem? O professor Barsan me passou o número da senhorita... Bom, eu precisava da revisão gramatical do meu trabalho. A senhorita teria como fazer?

Para quando?

Uma semana.

Qual é o assunto?

Oscilação Média Limitada.

Sim menino. Mas, é física, geografia, matemática?

Ah, sim, matemática.

Muitos termos técnicos?

Bastante.

Então tens que participar da correção. Posso amanha, às quinze horas e trinta e três minutos.

Claro! Muito Obrigado.

Até amanhã.

Bateu o telefone. Ele não gostou da voz, da rispidez, da correção a dois. Mas não tinha tempo, nem opção.

Ela não queria. Mas devia a Barsan. Faria.

Noutro dia preparou o chá e o aguardou. Menino magro, de língua presa, pouco expressivo, tímido, naturalmente incomodado. A correção durou três dias. O material ficou muito bom. Ele providenciou a impressão do material e retornou com a encadernação, como ela determinara, para que verificasse a necessidade de errata. Sentarem-se juntos, ela releu a tese de 247 laudas, cuidadosamente. Não constatou nada, o trabalho estava impecável. Pediu para que ele repetisse o procedimento. Enquanto isso ela ficou o observando. O fez por duas horas e vinte e sete minutos ininterruptos. Reparou nos dedos magros, na delicadeza dos movimentos. Na respiração. Na tosse seca. Na vida que as letras ganhavam em seus olhos. Na evidente satisfação ao ler a própria obra. Nas variações da expressão facial, nos sorrisos, discretos, de canto. Hipnotizada por cada gesto.

Ele pediu se poderia fumar. Ela não fez nenhuma objeção. Pediu fogo, estendeu-lhe. Fumando, continuou lendo o material. Acendeu mais um cigarro. Ele era cuidadoso, lento.

Perfeito, ele disse. Disse a ela, disse a si mesmo. Disse satisfeito, com o tom de voz do regozijo. Perfeito, ele poderia voltar para seu país, nunca mais veria os olhos cansados daquela mulher, não freqüentaria mais as bibliotecas daquela cidade, não continuaria naquela pensão, não imploraria mais por uma audiência com Barsan.

Pagou pelo serviço, agradeceu, foi embora.

Ela fechou a porta, voltou-se para a cadeira em que ele esteve sentado nos últimos dias. Sentiu sua falta. Esperou dois dias. Estava nervosa, mas havia decidido: ligaria, o convidaria para tomar um café. Sim, faria. Suspirou, discou os números, a ordem deles parecia enorme. Cada sinal de chamada durava uma eternidade. Os sinais se repetiram, doze vezes, sem retorno.

Tentou por trinta dias.

Ele partira da cidade.

Procurou por Barsan. O rapaz havia retornado as origens, informou-lhe. O trabalho foi laureado, acrescentou, ele recebera propostas de doutorado, sim, mais de uma. Não sabia por qual delas ele havia optado, é verdade. Enfim, Barsan não sabia seu paradeiro.

Mas haveriam notícias. Não houveram.

Só o que tinha era o original resguardado na biblioteca universitária. Ela já havia providenciado a cópia. Mas nela não podia reconstituir o momento derradeiro. As tragadas do cigarro, o toque dos dedos. Precisava do original, cheirá-lo, cuidá-lo.

Segurou forte, saiu correndo.

27 setembro 2005

Neste post, o link para a verdade. Acesse por sua conta e risco.

Em um canto mais reservado da Sala dos Professores, as duas mulheres elegantemente trajadas discutiam em sussurros, mas mesmo assim acaloradamente:

-- Estou te dizendo, Krissy! A autora da tese roubada, a tal Jennifer Woodworth, nunca existiu!!

-- Como não? Como não?! Meg, logo que fui contratada eu conheci a garota que dividiu o quarto com ela por quase dois anos! Só eu sei o que foi a garota contando como foi difícil agüentar todas as neuroses da Woodworth, encobrir-lhe os sumiços, aturar os papeizinhos que ela colava na parede com aquele sem-fim de fórmulas... E a mãe dela? Uma russa, ucraniana ou sei lá: só sei que, depois da defesa da tese -- logo quando a Jennifer desapareceu -- ela ligava pra essa pobre garota, tipo, de 12 em 12 horas, fazendo toda sorte de pergunta! E agora vem você com essa história, depois de tanto tempo?

-- Vai por mim, Krissy. O boato no Laboratório de Arqueologia é que aquele pesquisador gay que trabalha lá ... Irvine, acho que esse é o nome dele... sabia de tudo, e estava envolvido até o osso!

-- Irvine? Kenny Irvine??

-- Ele mesmo!! E a mãe da Woodworth também. E pior... tem um muçulmano envolvido... Acho que eles são todos terroristas!

-- Que horror, Meg! De onde você está tirando isso?

-- Da internet, de onde mais?? Espera, eu tenho o endereço aqui: ainda está no papelzinho que a Sally me deu. Toma, fica pra você. Dizem que está tudo lá em detalhes!!

-- Dizem? Mas -- você ainda não leu?

-- Eu não, querida. O texto é enorme! Além do mais, nem bem a Sally chegou dizendo que tinha devorado cada linha, ela sumiu. Faz dois dias que não vem. Parece que a Agência está envolvida...

-- Pois eu vou ler assim que sair da aula!

-- Boa sorte, então, Krissy. Caso você também desapareça, foi um prazer tê-la conhecido, viu?, disse a espevitada professora de Álgebra do Departamento de Mátemática da Universidade de Indiana, enquanto abria a porta de vidro da Sala dos Professores e a passos rápidos e curtos dirigia-se para sua sala.

Assim apressada, ela não pôde ver a mudança na expressão facial de sua colega, a Orientadora Pedagógica conhecida na instituição como "Krissy" -- Kristina Grinsberg-Schatzkin, segundo os registros: as linhas suaves e joviais de seu rosto assumiram um aspecto absolutamente frio e impessoal, calculista, até, como o de uma assassina treinada por anos a fio.

Muito menos pôde Meg ouvi-la dizer no celular sacado com movimentos firmes e precisos.

-- Jones está limpa. Ainda não leu. Sim, consegui o novo endereço -- disse "Krissy", desembrulhando o papelote que a professora lhe deu -- http://www.geocities.com/hombre_lagarto/cdpd/conto04.html?200523#BEA. Contate nosso pessoal no Yahoo Geocities. Algo precisa ser feito imediatamente. Já estão citando Irvine por nome.

Ouvindo calada por ainda alguns segundos, "Krissy" logo em seguida desligou o telefone e, olhando em volta para certificar-se de que ninguém percebeu a operação, reassumiu seu ar alegre e faceiro.

Saltitante, foi chegando-se a outro grupo de professores, perguntando festiva sobre o que eles tão animadamente conversavam...

26 setembro 2005

Cheiro de açougue

Quem está livre de cometer uma loucura por amor? Eu comprovei que eu estava dentro desse seleto grupo de pessoas, que age impulsivamente. Não só por amor, mas por qualquer outro motivo que o valha. Mas não fui sempre assim; muito pelo contrário. Sempre fui uma moça recatada, obediente e temente. Colocava a vontade alheia acima da minha, mesmo que isso fosse contra meus próprios anseios. Amélia morreria de inveja. Foi quando conheci o Cláudio, há pouco mais de dois anos atrás, próximo de meu aniversário de 40 anos. Eu estava no supermercado, e chorava copiosamente próximo ao balcão de congelados. Meu marido havia esquecido meu aniversário, talvez pela 10 ª vez consecutiva. Foram necessários 10 anos para eu poder me abrir e expor meus sentimentos, mesmo que fosse à frente de quilos de carnes mortas e geladas, o que não era muito diferente da nossa vida amorosa. Após as primeiras lágrimas escorrerem, Cláudio apareceu, do outro lado do balcão. Primeiro tentou disfarçar, fazendo que não tinha visto que eu havia chorado e tentava esconder as lágrimas. Depois foi muito atencioso, ofereceu-me um copo de água com açúcar, convidou-me para sentar. Não quis ouvir meus problemas, apenas se preocupou comigo, em me fazer sentir bem. Fiquei mais aliviada, eu só precisava daquele pouco de atenção que há tanto tempo haviam privado de mim. Em seguida ele me levou para trás do balcão, e ali trepamos como dois animais no cio.

Inconscientemente, desse dia em diante, comecei a me arrumar melhor para fazer compras. Foi assim que conheci o João, o padeiro; Rogério, o quitandeiro e Alberto o gerente. Foi o Alberto que me levou à essas casas de swing, onde pude ampliar minha rede de amizades. Reencontrei o Cláudio, quem havia me aberto os olhos para esse novo e admirável mundo. Começamos a nos encontrar mais vezes, às vezes atrás do balcão do açougue, às vezes em minha casa quando meu marido saía. Embora tendo conforto do lar e o perigo de meu marido retornar, eu preferia o açougue. Além de ficar mais exposta, eu gostava de sentir o cheiro das carnes, misturada com o cheiro do suor de Cláudio. Fiquei condicionada a isso, e era capaz de ter um orgasmo só de passar na frente de um açougue. Ele era um rapaz bem mais novo que eu; tinha idade para ser meu filho. Cursava a faculdade de matemática na federal, e estava próximo de se formar. Seu trabalho de conclusão versava sobre Oscilação Média Limitada, ou algo parecido. Lembro que isso tomou boa parte de nosso tempo, pois ele estava realmente preocupado. Várias vezes retomava esse assunto, até no meio de algumas fodas.
Sua maior preocupação era quanto a obra sobre a qual precisaria pesquisar. Necessitava do trabalho de Jennifer Woodsworth, que se encontrava no departamento de matemática da universidade. Porém, ele não queria ir lá, pois teve um desentendimento com um dos funcionários. Pediu-me que fizesse esse favor, ele me levaria no caminhão do supermercado e me esperaria na porta enquanto eu pegava a obra. Entrei no departamento, e pedi o tal trabalho. Peguei-o e li como se entendesse do assunto, então precisava dar um jeito de ficar sozinha com ele. Perguntei ao responsável se tinha como pegar emprestado, ele pediu que lhe desse licença, que perguntaria ao seu superior, pois era novo no setor e não conhecia as regras muito bem. Perfeito, assim que ele passou pela porta, enfiei o trabalho dentro do casaco e corri para a rua, onde Cláudio me esperava dentro do caminhão.

- Ande, rápido, ligue o motor e vamos embora!
- Tudo bem, mas por que a pressa?
- Logo eles vão dar falta de mim e do trabalho.
- Sim, mas tu não pediu emprestado uma cópia?
- Não, eu roubei o trabalho original. Não era isso?

Cláudio freou o carro bruscamente.

- Como assim, sua anta? Era só para pegar uma cópia, eles vão saber que eu fui o responsável, pois há meses pesquiso esse trabalho.

Toda aquela amabilidade de Cláudio transformou-se em raiva e em agressão. Com socos e tapas ele me tirou de dentro do caminhão e me jogou na rua, não sem antes arrancar o trabalho de mim.Tudo acabou. Voltei para o meu insosso e frio marido como se nada tivesse acontecido. Mas continuo a ter orgasmos quando passa em frente aos açougues.

25 setembro 2005

2 + 2 = 5

No final das contas, tudo faz sentido, caro porta-voz, querido tenente Jerry Minger.
Veja:

1. Estar escrevendo este bilhete, estupefata pela sua mente assustadoramente rasa = 78
2. Para explicar rapidamente que algumas várias vezes a óbvia soma de 2 com 2 é 5 = 78
3. Faz sentido com a volta à cena do crime, não com a sua evidente insolubilidade = 78
4. Felizmente pra mim é de pessoas pouco argutas como você que o mundo está cheio = 78
5. Incapazes de ver o que supostamente se oculta, só enxergam o que salta à vista = 78
6. Oscilação Média Limitada (BMO)*, Espaços de Hardy e Multiplicadores Primitivos = 78

7+8 = 15
1+5 = 6

Aguarde ansiosamente pelos dias que somam 6. Em um deles conhecerá, respaldado por uma nova arma nuclear, aquele a quem prestará contas de cada minuto restante de sua vida.
A fórmula esteve o tempo todo ali. Admito, não com o mesmo objetivo. Entretanto, aparentemente, seu poderoso – mas deveras ingênuo - Deus pensou que a raça que tão bem criou a enxergaria antes de mim. Engano.
Quem assina? O mesmo nome que usava enquanto estive por aí: Lauren Morris Silver.

13 setembro 2005

4º Tema

Terminada a aventura africana em terras tupiniquins, abrem-se os trabalhos para a nova apresentação para o próximo tema do projeto do Círculo do Poder. Os milhares de fãs não se agüentavam mais de impaciência em saber sobre qual tema estes 9 malditos iriam abordar. Então, silenciem todos e abram espaço para o próximo tema, sugerido por Luís Lagarto.
Mulher misteriosa rouba dissertação de 1997

Segunda, 15 de agosto de 2005
17h50 (horário da Costa Leste)

Nem a polícia nem o Departamento de Matemática da Universidade de Indiana (IU) foram capazes até o momento de entender porque alguém fugiu com uma dissertação de doutorado em matemática do ano de 1997.

"No final das contas, não faz sentido", disse o porta-voz da polícia da IU Tenente Jerry Minger. A polícia disse que uma mulher, descrita como aparentando entre 40 e 50 anos de idade, visitou o departamento de matemática recentemente e pediu para ver a dissertação de Jennifer Woodsworth, de 1997, sobre "Oscilação Média Limitada (BMO)*, Espaços de Hardy e Multiplicadores Primitivos".

Um funcionário do departamento levou a mulher a uma sala onde são mantidas as dissertações e saiu para verificar com o responsável pelo departamento quando ela perguntou se poderia emprestar o documento por alguns dias. Quando retornou, a mulher e a dissertação tinham desaparecido.

O funcionário viu a mulher atravessar a rua correndo e saltar para o banco de passageiros de um caminhão estacionado, que então acelerou e partiu.

David Hoff, chefe do departamento, disse que o roubo foi intrigante porque cópias das dissertações são liberadas para empréstimo na biblioteca da IU. Minger disse que essa foi a única vez em que alguém roubou uma dissertação, pelo que se lembra. Tentativas de contatar Woodworth, a autora, foram infrutíferas.

Segundo Hoff, os funcionários da IU estão divididos quanto aos possíveis motivos para o roubo. "Foi muito estranho, e estamos todos tentando achar alguma explicação", disse ele.
* BMO = Bounded Mean Oscillation
Os fãs ainda terão de esperar até o dia 25 de setembro para conferirem os textos abordando o tema acima.