28 junho 2005

Palhaços

Ninguém viu quando a criança se aproximou da jaula. A mãe não viu; estava entretida demais com os palhaços a dar cambalhotas pelo picadeiro, a correr com as roupas em chamas enquanto outro se lançava sobre eles com um extintor de incêndio. Ninguém viu a criança ser atacada pelo leão, até que seus gritos de terror abafassem os risos e as palhaçadas.
Era indiferente a morte do leão pelas mãos do próprio domador. Indiferentes os choques aplicados pelas mesmas mãos que alimentavam o animal. Indiferença parida pelos gritos de uma criança. Grito de inocente que desconhece o mundo, atacado, que reduz a fera a nada.

"Atacaste um homem, uma criança e um inocente. Foste condenado à morte e àqueles que te amavam trouxeste a ruína. Deixes, pois, que te julguem a tua consciência, a de tua vítima e a do teu criador".

Da impossibilidade de não fazer julgamento ou o martírio da ex-futura escritora

Fossem os escritores medíocres menos vaidosos e mais estudiosos, encarariam o fato de que, quiçá um dia, poderiam tornar-se críticos literários. Nota gritante escrita em vermelho berrante para mais estudiosos ali da primeira linha, porque de críticos literários medíocres o mundo também já está cheio.
Esse universo dos escritores medíocres, no qual apresento-me Luciana inserida, peca principalmente pela incapacidade atroz de ver-se livre de pré-julgamentos, de preconceitozinhos, pela impossibilidade de não optar por lado algum.
O quanto é mais fácil resguardar-se atrás de uma só opinião? Quando é que alguém estruturado em linha linearmente linear de personalidade unilateralmente parcial é capaz de dissociar-se dos estereótipos criados pra si?
Vejamos o caso do leão aqui, tema de nosso convescote literário. Da primeira à centésima vez que li o tema proposto – leão ataca criança em circo - fui me dando conta da minha brutal limitação em conseguir ser humana o suficiente para defender algum dos seres humanos envolvidos na, convenhamos, fatal tragédia do pobre-leão-maltratado-e-faminto-fadado-a-entreter-cretinos-usurpadores.
Pensei em personificar o domador. Culpado.
Pensei em personificar a criança. Culpada.
Pensei em personificar a mãe da criança. Culpada.
O tio que acompanhava a criatura descontrolada? Culpado.
Os outros animais, a mídia, as testemunhas? Todos lotando a cadeia de Restinga Seca, local do ocorrido.
Pensei em humor negro, pensei em conto fantástico, metáforas, alegorias, paralelismos, virei o tema de ponta-cabeça, fiz uma força incomensurável para me livrar de algo que já sabia: eu opto demais, demais...
E quando vejo, eu quero afagar Simba, o já meu leão, dizer-lhe ao pé do ouvido que tudo vai dar certo, que gente é assim mesmo, eu quero abraçá-lo e lhe dar conforto. Meu mais recente desejo desde que o conheci é acarinhá-lo, deitar as mãos em seus pêlos macios, segurar forte em sua juba para fazê-lo olhar dentro dos meus olhos quando eu sorrir para ele, mesmo sabendo que ele não vai me sorrir de volta. Quero lhe comprar uma passagem só de ida para a savana africana e soltá-lo, faço questão, eu mesma. Para não perder o brilho de seus olhos ao dar oprimeiropassoparaacorridadesenfreadaquequererácertamentedar para compensar os anos sofridos. Quero encontrar uma leoa que cuide bem de seus filhotes, quero que coma bem, que tome sol, que se contorça brincando na grama, no riacho, na terra, que se livre de maus-tratos, e que eu não receba sua foto por e-mail dos protetores dos animais. Sim, eu assumo, me apaixonei por Simba. E pior, não podia ser diferente. Mea culpa. Tivesse Simba tido um ataque de voracidade e exterminado metade de Restinga Seca – a propósito, onde fica tamanha desimportância geográfica? – eu ainda estaria do seu lado. Pra todo o sempre.
E aí entra a ex-futura escritora. Alguém já deve ter dito que o maior equívoco cometido pelo poeta foi ter se apaixonado por sua musa. Se ninguém disse, alguém deveria ter dito.
Porque desse poetinha menor aí advém um olhar míope, a cegueira que vai ditar as palavras de seus escritos. Ele vai optar, ele vai se envolver, ele não vai deixar espaço para que o leitor interaja, esse escritor, o medíocre, já entrega a “arte” pronta, sem a menor graça, propaga uma idéia, acima de tudo é um narcisista. Feio, feio, feio.
Eu tentei. Meus rascunhos se desenharam capengas, rotos, tortos, fingidos, sem emoção alguma. Belo exercício que atirou na minha cara a pergunta: será possível não envolver-se?
Aparentemente não pra mim. E que fique claro o aviso que dou desde o início: eu sou incapaz, com surtos de capacidade. O segundo, sob um olhar generoso, talvez explique estar neste grupo.
Espero sinceramente ser capaz de surtar na próxima. Que seja por hobby.

O carrasco e o garrote

Enquanto arrastava o corpo de Simba, o leão, seu pai chorava.

Ironicamente, a morte dele tinha partido de quem mais o protegia e amava.

Chorava porque não havia sido sua culpa!

A sucessão de fatos que ocorreram e levaram ao fim a “fera faminta”, não eram minimamente relevantes.

A questão é que Simba agira mal e que precisava ser punido.

E sempre punimos quem amamos para torná-los seres melhores.

De fato, a punição ocasionara a morte de Simba, mas não era sua culpa!

Olhando para Simba ele sabia que ele o perdoaria, afinal era sua profissão, sua natureza.

Tinha certeza que Simba teria perdoado como perdoam aqueles que não tem opção, por amor, ódio ou medo.

Ele sempre fora quem segurava o chicote, o protetor com o bastão elétrico.

Aquele que mantinha os outros humanos presos do lado de fora da jaula.

Porem, o Criador da fera era um homem consciencioso, de modo que ninguém se engane achando que ele sentia auto-piedade, pois o conceito de auto-piedade encontra limite na senciência, ou no também denominado auto-conhecimento.

Não há auto-piedade na autocrítica.

Simba, a “fera faminta”, que tantas vezes ele fizera rugir em um teatro que gerava sustos de uma platéia sedenta de sangue.

A fera cativa, torturada e moldada durante toda sua vida para servir e divertir os humanos.

Que havia negado seus instintos e aprendido a amar e respeitar o portador do chicote, seu executor.

Após tantos anos de sofrimento, agora jazia morta, culpada por ser o que era.

Agora, enquanto aguardava o dono do circo, fumando seu cigarro e olhando para o corpo de sua vítima; Agora que todos haviam se retirado, ele sentia o aperto no peito, aguardando sua punição e chorando...

Porem, quanto vale as lágrimas do carrasco, ao perceber o garrote em seu pescoço?

Quando o show não continua

Como todo ser humano, eu já fui um pecador. Eu mal tinha feito quinze anos, quando os McRay se mudaram para uma fazenda de trigo nos arredores de nossa cidade. Ianques, vieram se esconder no meio do Kentucky para fugir da balbúrdia crescente das metrópoles que, no início dos anos 1970, eram só agitações e violência. Hereges.

Os contornos eram os de qualquer família americana: pai, mãe, filho adolescente jogador de futebol e filha ainda com dez anos incompletos. Pareciam simpáticos, receptivos, tementes ao Senhor. Hah! Pouco sabia eu dos vícios que traziam daquelas terras inóspitas de ateus e prevaricadores! Steven, o pai, morreu meses depois, de cirrose hepática. Janeth consolou-se muito bem nos braços do negro Abe, que cuidava dos animais e da plantação – tiveram até mesmo a ousadia de irem juntos à igreja, num feriado de Ação de Graças! Por sorte o povo justo de minha cidade os repeliu, com tanta propriedade que menos de um mês depois o casal rumou para o Norte, levando a pequena Josie que, segundo soube, teve seu primeiro filho antes dos 17 anos... e com um latino.

Jonathan não poderia ter fugido à regra. Corria em seu sangue toda a podridão e desvario de seus pais, como eu poderia ter esperado que ele fosse diferente? Ainda assim, jovem e inexperiente, encantado pelas histórias que o garoto dois anos mais velho que eu me contava do mundo além da mansidão do condado de Wayne, fui me entregando mais e mais a ele, seguindo seus conselhos, imitando seus maneirismos e gírias, usando as mesmas roupas... transformando-me em seu seguidor, como se ele fosse o caminho para um mundo mais pleno, onde a vida ao menos parecesse ter algum motivo. Não demorou muito até que essa entrega... ultrapassasse os limites da admiração... e chegasse ao físico... numa noite estrelada... sobre os montes de feno... onde eu o recebi... como parte inseparável... de mim...

Eu estava a seu lado quando sua mãe foi expulsa da igreja, e voltei com eles na dolorosa caminhada até a fazenda. Mal tínhamos andado dez minutos, quando a caminhonete de meu pai bloqueou a estrada, carregada de outros que queriam remover aquela chaga do seio da cidade com as próprias mãos. Eu me coloquei entre eles e minha nova família com tanta veemência que tudo ficou claro para todos e meu pai ali mesmo me renegou, dando-me as costas para todo o sempre.

Quando voltei a mim, percebi que Janeth chorava nos braços de Abe, que olhava fixo para o chão, tendo a pequena Josie agarrada a uma de suas enormes mãos. Jonathan olhava para o horizonte, impassível. Dei um passo em sua direção, mas ele não se moveu. Foi somente quando eu pus a mão em seu ombro que, num golpe rápido, ele prendeu-me numa chave braço e deu vazão à sua fúria, como um leão em pleno ataque: “Você não podia manter essa sua língua suja dentro da boca, seu idiota?”, vociferou, antes de me empurrar para o chão e ordenar aos demais que seguissem em frente. Sem me levantar, derramei uma única lágrima, muito grossa e lenta, que pairou no meu queixo enquanto eles se perdiam na distância e depois caiu sobre uma pedra da estrada, desenhando em sua superfície arredondada um ponto de interrogação.

Fugi com o circo que passava pela cidade vizinha naquela mesma noite, e tudo o que soube de Jonathan é que pouco depois da partida de sua mãe, vendeu tudo e nunca mais foi visto. Mr. Rockmore, um fervoroso servo do Senhor, pai de cinco filhos, todos parte da trupe, ao saber de minha história, me fez ler a Bíblia todas as noites... e líamos com fervor redobrado sempre que cometíamos algum deslize... quando sua mulher estava indisposta... ele dizia que já estávamos salvos, e que sem dúvida seríamos perdoados... e foi o mesmo que me disse Stan, seu filho mais velho... e três dos nove palhaços... e o tratador de elefantes... e um dos motoristas... e o domador de leões, cuja atuação me fascinava tanto que ele me tomou por aprendiz. Quando envelheceu e precisou deixar o circo, ninguém contestou a passagem do chicote para as minhas mãos. Afinal, jamais tinham visto alguém tão sem medo, tão audacioso em suas performances, tão íntimo das feras entre um espetáculo e outro.

Entre estalos e rugidos, a década de 1970 e os nomes e rostos de Wayne foram ficando para trás. Talvez a única reminiscência sejam meus animais machos, todos batizados de Jojo. E foi com Jojo VI que treinei o número que apresentaria em Tucson, Arizona, naquela noite: uma corajosa chave de braço no pescoço do bicho, totalmente desarmado.

Seria nossa primeira cidade grande em muitos meses, depois do fiasco de San Francisco, em que um grupo de ativistas do PETA interrompeu nossa apresentação e tentou soltar vários animais. Que mais esperar de uma cidade onde a iniqüidade acontece às claras, com todos aqueles clubes de sexo, todas aquelas casas noturnas onde homens seminus dançam como possuídos e se irmanam em seu suor, saliva, e demais fluidos... Antros! Foi um custo convencê-los de que não maltratávamos nossos bichos, que eles eram mais amigos durante as longas viagens que meros... instrumentos de nosso ofício. Afinal, éramos todos bons homens e mulheres de D-us.

Eu o vi logo na terceira fila, junto ao corredor principal. Jonathan McRay. Bem-tratado pelos anos. Uma onda intensa de ódio somou-se à tontura que me roubava a firmeza das pernas quando a mulher loira ao seu lado se inclinou para colocar pipocas em sua boca, com um beijo de esposa feliz. Sim, esposa, porque o garoto ao lado dela tinha indiscutivelmente os traços dos dois. O apresentador gritou meu nome e eu sorri mecanicamente, e vi em seu rosto que ele me reconheceu. Pela próxima hora, seus olhos ficaram fixos nos meus.

Quando chegou minha vez de tomar o palco, dei o melhor de mim, e nunca fui tão aplaudido. Exibi-me para ele, e fiz questão de gritar o nome de Jojo, para que ele ouvisse e entendesse. Nos bastidores, Stan veio me cumprimentar pelo sucesso, mas eu mal pude entender o que dizia. Jonathan estava parado mais à frente, próximo a um dos trailers.

Todo o meu ser parecia prestes a entrar em colapso quando fui me aproximando dele – era impossível coordenar os movimentos mais simples, era impossível falar, enxergar direito, respirar. Trinta anos de emoções e perguntas represadas, trinta anos de noites mal-dormidas ou entregues a outros que jamais teriam aquilo que nós tivemos, três décadas de ódio, culpa, medo e desejo – um dique emocional malfeito tentando represar um oceano.

Antes, porém, que eu tivesse a chance de saber qual dessas emoções me dominaria quando eu falasse com ele, o caos adiantou-se, tomando a forma de um homem desesperado que chegou-se a ele aos gritos de “Reverendo, Reverendo, seu filho!”. Nem bem os dois correram dois passos quando os gritos se multiplicaram numa cacofonia de horrores, no meio da qual eu distingui aterrorizado a palavra “leão”.

Todo o resto foi um borrão de acontecimentos indistintos e vertiginosos, como sói acontecer em tais circunstâncias. Num descuido da mãe, a criança aproximou-se demais da jaula e Jojo VI, que mesmo com os demais de sua espécie era arisco, tratou de eliminar o incômodo da maneira mais rápida possível.

Quando cheguei o menino ainda se debatia, mas em um chacoalhão todo o seu corpo amoleceu, ficando inerte como um pedaço de pano pendurado na bocarra do rei dos animais. Jonathan, naqueles primeiros segundos, estava totalmente em estado de choque. A mãe, desmaiada, principiava a ser socorrida. Ninguém se atrevia a chegar perto da jaula, agora com todos os outros animais agitados por causa do cheiro do sangue.

Era preciso fazer algo antes que o corpo todo do garoto se perdesse. Foi aí que Jonathan gritou meu nome. Saquei a pistola enquanto olhava firme em seus olhos, e meu corpo virou-se na direção de Jojo sem que meu rosto acompanhasse o movimento. Quando o fez, foi para encontrar a visão que jamais me deixará enquanto eu viver: o olhar do bicho era o mesmo do pai da criança. Pedia a mesma coisa. Tinha a mesma urgência.

E o tiro, o único, foi certeiro, no lugar exato onde Caim teria carregado a marca por ter matado Abel.

Na delegacia, depois dos depoimentos, depois dos repórteres e dos curiosos e dos ativistas, nos deixaram por um momento a sós em uma sala com dois sofás e uma mesinha. Os minutos de silêncio foram secos, lentos. Não nos olhamos. Súbito, ele se levantou, e eu achei que iria embora e tudo ficaria assim, até que nos encontrássemos novamente... se nos encontrássemos novamente... mas ele caminhou em minha direção, sentou-se ao meu lado e me encarou longamente, o canto de seus lábios tremendo, até que conseguiu dizer:

“Sinto muito”.

“Eu sei”, respondi, e enquanto ele caía em um pranto longo e convulsivo, abracei-o e aninhei sua cabeça em meu peito, acariciando-lhe suavemente os cabelos cheios, de um loiro avermelhado onde já apareciam alguns poucos fios brancos.

“Eu sei, Jojo, eu sei.”

Zo

Desculpa-me Zorak, eu não poderia imaginar. Era só uma merda de notícia de jornal, daquele lixo sensacionalista que tinhas o costume de ler. Realmente não poderia saber, não cheguei tão próximo para ver as letras borradas no papel prensado, as tuas lágrimas que haviam “maculado” a triste notícia, da qual, sequer, eu tinha conhecimento. Mas tu não tinhas o direito de dizer que sou insensível. Não o tens. Fazem cinco anos que vivo a tua vida, agenciando tuas mimices. Todo este tempo te adorei e amei. Insensível, não sou, sabes disso.

Não queria ter te agredido, mas têm sido tempos difíceis, entende.

É uma pena que não possa ver a rosa que trago para ti, um botão graúdo, de caule grosso.

Desculpa a voz embargada, a cara amassada, não tenho dormido muito bem, toda a vez que deixo a cabeça pesar sobre o travesseiro parece que o mundo pesa sobre ela. Dramático, sempre fui perto de ti, pena não estares aqui com aquele sorriso debochado costumeiro, não é? Sabe, falando de sorriso, lembrei dos teus dentes brancos... E falando em dentes, tenho andado com os meus sempre cingidos.

Quando cheguei no apartamento, estavas sentado na mesa, de costas para porta. Imaginei que te encontraria lendo o jornal naquela posição, e foi por isso que entrei de maneira tão violenta. Era só mais uma cena, de tantas, não deverias ter ficado tão chocado.

Lembra Zo? Eu estava no Guerrilha, com todas as bicha velhas, metidas a austeras e posudas, contra a janela, fumando. Olhei para cima e tu estavas dançando. Como eras putinho, muito, sabe, uma bicha magrinha destas modernas, com os cabelos muito bem arrumados, os olhos negros de carvão, tão bonito, dançavas para mim. Eu fumava meu cigarro, sabendo que logo tu te aproximarias. Não demorou muito, veio te requebrando todo, descendo as escadas... No meio do caminho te agarrou com um gurizinho... Puxavas os cabelos da nuca dele, engolindo o pobre, me olhava.

Quando te aproximou, eu já tinha um cigarro aceso para ti. Tinhas gestos muito frescos, uma voz adolescente, arranhada, grave e fina. Num ar de desafio, tão bobo, me disse que não sairia tão caro. Foi muito caro Zo.

Depois daquela noite, houve tantas. Foi divertimento, eu sei, mas o envolvimento partiu primeiro de ti e fiquei comovido, enternecido com o ar adolescente, com o teu desamparo, a tua ingenuidade. E tu, soubeste arrancar cada tostão de mim, eu sempre soube que era isso que querias, e te provia.

Como um filho mimado, quando começou tua faculdade idiota, me deixou de lado, e teve teus novos amigos, teus novos meninos. Eu respeitei cada segundo, cada momento. Todas as vezes que caiu te levantei, ou, ao menos, de alguma forma tentei. Existiam muitas coisas que não poderia te dizer. Só que não cabia a mim te julgar, te reputar por teu despreparo e imaturidade.

Obviamente, não tinhas a mesma delicadeza, mas eu suportava, fazia parte do pacote, não fazia? Eu era uma bicha solitária, frustrada, quarentona. Nunca deixei que meus outros casos te machucassem. Sempre cuidei tanto de ti, Zo.

Mas este ano foi difícil. Perder teu sexo foi muito doloroso, mas a perda da tua confiança foi assaz. Reclamavas da falta de dinheiro, do controle, das coisas que os outros faziam e tu não, como se fosse apenas para manter algum diálogo comigo, talvez por certa compaixão, e também, é verdade, aproveitavas para transferir-me alguma culpa. Dos teus problemas, eu não sabia mais. Afastaste muito de repente. Não deixei que me devolvesse a chave do apartamento, tinha-o comprado para ti, e não para nós, como pensavas. Continuei dando a tua mesada porque me sentia, de alguma forma, comprometido, não só pelo amor que tinha por ti, mas por parecer ter te corrompido, bastando-me, então, te ajudar daquela forma; tu, aos poucos, me convencias.

Mas Zo, tu cuspiu na minha cara, lembra? Chamou-me de maldito, soluçavas aquele dia, tremia. Culpava a mim das coisas erradas da tua vida, de todos os pormenores. Perdeu teus critérios Zo, estavas tão aturdido e sequer deixava-me ajudar, aproximar.

Eu precisava te ter, do teu cheiro, da tua carne. Doía muito Zo... Mas guardava respeito por tuas vontades. Não Cheguei aquele dia, daquele jeito no apartamento, montado naquela cena, para te impressionar, te assustar, te fazer cair na real de qualquer modo, por mais bobos que podiam ser meus meios.

Era só uma notícia. Não sabia do que se tratava, e tu tão abalado, me humilhaste daquela maneira, disse que eras meu brinquedo de luxo, dentre tantas coisas sem sentido. Culpa das tuas burradas, Zo, da tua imaturidade, e disso não podes me responsabilizar. Era só um leão de circo, um animal mal tratado, instável, que havia agredido uma criança sobre sabe-se lá que circunstâncias. Ainda, menos que isso, apenas uma notícia de jornal...

Zo, meu amado, quando te levantaste naquela pose, acusando a mim de ter te sujado, de ter acabado com a tua vida, realmente não te compreendi... Me incriminavas de tantas coisas ao mesmo tempo, que fiquei perdido. Ora, afinal, eu era incapaz de entender a morte de um animalzinho, a dor de um criador, a frieza de um delegado. Por favor, Zo, era manhã cedo, não sabia do que estavas falando. Tinhas bebido, não acreditei quando tirou a roupa e pude te ter. Pensei que havia te trazido de volta, foste tão carinhoso... Só que eu não tinha entendido o teor das tuas palavras... Depois que tu dormias, fui ler a notícia e ainda assim não vi motivos para tanto. Não fui eu quem te sujou meu amor... Eu estava limpo até então.

Como pode desconfiar de alguém que cuidava tanto de ti. E assim, como uma bicha velha instável, como dizias, fui tomado de uma ira repentina, voltei ao quarto e tive teu pescoço entre meus dedos. Parecias um anjo, delicado, safado, mal ressonavas. Tua pele branca... Por quê me acusaste tão veementemente... Saí correndo Zo... Não sabia, se quer, se continuavas vivo... Mas era tu quem havia me sujado, por uma desconfiança tão boba, tão fraca... Frente a indícios tão débeis... E eu, jamais teria coragem de negar a tua carne.

Zo, foste tudo o que tive naquele tempo. Demorou muito para que eu pudesse perceber que para ti, eu era apenas a única saída. Ouvir isto da tua boca, não foi fácil, mas depois de tantas coisas que me falou, me oferecias teu corpo, e sabias que não exitaria em tomá-lo.

O leão morreu Zo, pois a vida, meu menino é assim: às vezes existem atitudes que têm que ser tomadas na hora, mesmo que a solução possa vir a ser desagradável. Não sabiam que o tal instrumento de choque estava desregulado, deveriam saber. Mas o tratador tinha que tomar aquela atitude, frente ao animal amado, tratado, cuidado.

Contigo não foi diferente Zo, eu precisava tomar alguma atitude e tinha que ser naquele momento. Agora, sofro as conseqüências, diariamente, e o ano que estava sendo difícil, parece ficar pior.

Deixei uma nota no jornal bem ao teu contento, recortei e a deixo aqui, junto com a rosa. Meu anjo, descansa em paz.

Vida presa

Quais são os meus direitos? Será que ainda terei paz em minha vida? Ela vem aqui todos os dias, arruma minha casa conforme seu gosto, cospe suas ordens, suja minha louça e esvazia meus armários de comida. Desde que essa infeliz entrou em minha vida eu não tive mais sossego.
Nos conhecemos em um bar no outro lado da cidade. Logo de início ela me pareceu muito ameaçadora. Tentei fugir, mas ela me capturou, bruxa, com seu feitiço de charme e beleza. Daí por diante a vida virou um inferno. Senti-me preso dentro de mim mesmo, um escravo de minhas emoções. Ela nunca me respeitou, talvez eu também não tenha me dado o devido respeito. Deixei me enganar por um belo par de seios e olhos verdes. Me domou como se doma um potrinho perdido, virei um leão domesticado. Ela fazia o que queria comigo, me humilhava na frente dos meus amigos, me cuspia ordens, me fazia a acompanhar em chás das amigas. E eu sempre fazia tudo, compenetrado, como que hipnotizado. De vez em quando o feitiço parecia se quebrar, e minha ira vinha em diversas formas. As vezes uma batida de pé, um soco na mesa, um urro preso na garganta que se soltava. Mas aí, a ira dela vinha maior que a minha e me subjugava como um gatinho com medo dos cães.
Meus amigos me abandonaram e eu fiquei só em minha jaula aguardando, obedecendo a tudo que me era comandado. No espelho eu já não mais me reconhecia. Minha barba que cultivei durante tantos anos, desde que os primeiro pêlos começaram a aparecer no rosto, não estava mais ali. Ela não gostava dos pêlos que, segundo ela, arranhavam seu rosto. Meu cabelo está sempre emplastrado de gel, pois ela gosta. Perdi 10 quilos, sinto-me subnutrido e fraco, mas ela gosta assim, para me manter mais ainda sob seu poder. Meu guarda-roupa foi todo fora, ela mudou todas as cores das quais eu gostava. Sinto-me um imbecil quando saio na rua. Mas não consigo evitar isso. Aguardava apenas a hora de me ver livre de tudo: a hora de minha morte. Nada mais me importava.
Então, resisti à morte e aguardei, durante anos que o feitiço ficasse fraco. Segurei tudo que podia, para que minha atitude viesse com a força máxima que pudesse me libertar. Não tinha mais que aguardar a minha morte e sim a morte dela. Combinamos de nos encontrar no shopping para fazer compras de roupas e sapatos para ela. Encontrei ela na frente da Vitor Hugo e despejei toda minha raiva de uma vez só. Ela tentava me subjugar com suas hábeis palavras, mas as coisas vieram com tanta força que não consegui evitar o ataque físico. As pessoas tentaram me segurar, mas ninguém podia conter minha ira. A adrenalina era tanta que não senti quando um segurança do shopping me deu um choque elétrico. Continuei meu ataque até sentir que estava livre, que veio exatamente quando senti o segundo e mais forte choque. Meu coração ficou tranqüilo e a paz invadiu minha alma.

Tudo em seu tempo - 1º Tema

O prazo está aberto e dentro de poucas horas novos textos estarão inundando estas páginas. O período para postagem termina terça-feira, dia 28 à meia noite. Não sei quanto aos outros, mas estou ansioso para ver os resultados. Desde já quero deixar claro que não se trata de concurso, mas sim um outro meio de liberar a criatividade. Achei legal essa idéia para ver qual a visão de cada um sobre o mesmo tema, talvez eu fale como fã que sou de cada um dos participantes. Apesar de já estarem aparecendo os desfalques, acho que poderemos continuar. A idéia do prazo foi estabelecida para que possamos manter uma certa produtividade.

O tema sugerido por mim é a seguinte notícia de jornal:

Tragédia: Simba foi morto pelo domador após atacar menino no picadeiro, durante apresentação que era vista por cerca de 400 pessoas

Notícia:
Leão ataca menino em circo em Restinga Seca Criança de oito anos sofreu ferimentos leves quando se encostou em uma grade durante a apresentação do felino LUIZ ROESE/ Agência RBS/Restinga Seca
A sétima apresentação do Circo Rodeio Búfalo em Restinga Seca, região central do Estado, estava perto de terminar no domingo. Por volta das 22h30min, estava se encerrando o número do leão Simba, que, entre outras coisas, passa pelo meio de círculos de fogo. O palhaço já havia anunciado a próxima atração, a "gineteada com pôneis", o que despertou a atenção da garotada. Neste momento, um menino de oito anos foi atacado pelo leão.
Salvo pelo domador, o garoto está fora de perigo. O felino foi morto na seqüência pelo tratador com dois choques. Cerca de 400 pessoas assistiam ao espetáculo.
O menino Ralf Israel da Silva, que havia ido ao circo com o tio Valmir Lopes Castro, 33 anos, foi alertado pelo palhaço para o show dos pôneis e se levantou de seu lugar. Segundo testemunhas, ele teria subido na grade de dois metros de altura que separa o público do picadeiro. Quando Ralf procurava os pôneis, foi surpreendido.
- Quando eu vi, o bicho já estava em cima de mim e me puxou. Pensei que ele ia me matar. Pedi socorro para o meu tio - relatou a vítima no final da manhã de ontem, deitada numa cama do Hospital de Caridade São Francisco, em Restinga Seca.
Imediatamente, o domador Juliano Kunz Moura, 33 anos, deu um choque elétrico com um artefato semelhante ao usado na lida do gado. O leão recuou. Quando o animal se preparava para dar o segundo bote, foi atingido novamente.
- O aparelho acabou travando na boca do bicho, talvez por causa da umidade. Não consegui desprendê-lo, e o Simba acabou morrendo - conta Moura, que chega a chorar quando fala do companheiro de cinco anos de idade e de 220 quilos.
O garoto foi retirado do picadeiro pelo tio e levado ao hospital. Teve apenas ferimentos leves por causa das mordidas que levou no pescoço e nas costas. A previsão é de que ele tenha alta até amanhã.
A mãe dele, a secretária Jucelaine de Castro Brito, 35 anos, acredita que o circo não teve os cuidados necessários:
- A grade de proteção é muito baixa, e não havia ninguém cuidando para as crianças não chegarem perto.
O titular da Delegacia de Polícia Civil de Restinga Seca, Jun Sukekawa, acredita que houve negligência por parte do circo, que permitiu que o menino chegasse até a grade.
- Pelos depoimentos até agora, a tendência é indiciar os responsáveis pelo animal por lesão corporal culposa, por causa da falta de cuidado.


Abraço a todos e bom trabalho.

07 junho 2005

Início

Este é o blog onde serão postadas as experiências de sete amigos que têm na escrita uma forma de expressão. Em breve daremos início às publicações através de um trabalho em equipe, onde os sete escritores utilizarão seus diferentes estilos para escrever sobre um mesmo tema.

E são eles: Marcelo Ribeiro, Luciana Sanches, Fernanda Ribeiro, Renan Espinoza, Eduardo Capp, Tiago Habkost e Anderson Morales.

A expressão é livre e sinto que algo bom deverá sair daqui.

"Sensless art is just tolerated vandalism. We ARE the vandals!"