21 julho 2005

Bilhete de Despedida

Esvaziei a terceira taça de vinho e pensei em dormir. Mas não era a hora certa ainda; precisava ter a conversa. A mesma conversa da qual durante tantos anos fugi, como se fosse esperar pelo padre com a mão à palmatória. Era como acordar na manhã e ter que explicar as batidas no carro de seus pais. Por mais que tu fizesses, eles iriam descobrir. Coisas de adolescente; mas são essas coisas de adolescente que tem me perseguido nos últimos anos. E são delas que tenho fugido incessantemente. Quando me olho no espelho vejo aquela pessoa na qual eu saberia que iria me transformar, mas não conseguia evitar: um adulto, uma vida infeliz, pêlos crescendo por todos os lados, uma mentira e um caminho sem volta. Cada ano que passa me sinto mais perto da morte e nada além disso. Tenho a sensação de que tudo isso vai acabar logo e que não precisarei me preocupar mais. Primeiro eu achava que não iria passar dos 23 anos. Mera ilusão, queria morrer como um Ian Curtis, mas não tive coragem de arrancar minha própria vida. Não sabia de muitas coisas ainda, a esperança ainda tinha pulso.


Fui o bom moço da família, estudioso, educado, criado pela avó. Minha tia morreu semana passada e quando as pessoas, que a conheciam, vinham me cumprimentar me diziam: ela tinha orgulho deste sobrinho. Mas não sinto orgulho de mim mesmo. Sei que no fundo sou um preguiçoso, fracassado, sem futuro, que não tem nenhuma habilidade aparente. Tento esconder isso através de uma máscara distorcida que não reflete meu ser, ecoando em risadas falsas e sorrisos amarelos. Sou mais amargo que aparento, mais infeliz que gostaria. É como quando fingia que estudava, mas que na verdade lia uma revista em quadrinhos que estava no meio dos livros da escola.


Já fui o bom moço, o bom namorado, o bom filho, o bom genro. Leio livros nos ônibus para mostrar às pessoas que sou culto, dou esmolas a quem me pede, não jogo sujeira nas ruas, não dirijo embriagado, não falo palavrão, não suborno, não omito, não maculo. Servi ao exército como bom cidadão; aprendi novas posições como se espera do bom amante; fui o fair-play do time; fui um doente para que tivessem pena de mim; fui o filho sábio a zelar pela casa à espera dos pais; fui o estagiário competente alternando funções; fui o bom amigo sempre com o “deixa-disso” na ocasiões mais próprias; fui o aluno obediente a aceitar o que o professor diz; fui o músico compenetrado a tocar a mesma nota ao infinito; nunca usei drogas; não roubei, não matei, não pequei; já fui o traído, o coitado e o conformado. Fiz todas fantasias, e essa é a palavra: fantasias. Meu verdadeiro eu escondeu-se embaixo de mil carapaças, protegido de tudo e de todos.


De hoje não passaria, aquela conversa iria acontecer. Eu precisava me ouvir. Toda minha vida foi uma encenação. Sempre me passei por McCartney, mas morro de vontade de ser Lennon. Este exorcismo deveria ter sido feito há anos atrás. Uns dez anos. Minha primeira camiseta de banda comprei aos 20 anos. Semana passada vesti minhas primeiras calças rasgadas. Quisera ter eu os 10 quilos a menos que eu tinha há 10 anos atrás, mas isto se torna cada vez mais difícil. Tudo que me resta é ser um delinqüente, aquele que por tantos anos eu mostrei desprezar. Por muito tempo tudo que eu esperava era a pena das pessoas. Agora, qualquer outro sentimento me serve, ódio, indiferença, desprezo, qualquer um, menos pena.


Quis me libertar, dizer o que pensava, não reprimir meus sentimentos. Mas sempre tive medo de represálias, de olhares inquisidores, da atenção redobrada. Não preciso de braços à minha volta, não preciso de drogas para me acalmar. Nunca consegui me expressar, nunca pude plenamente. Não quero mais ser quem eu sou e está muito tarde para voltar atrás.Tudo foi dito, a gaveta está vazia e tornará a ser fechada. Talvez eu me surpreenda, talvez eu surpreenda a todos. Resta a dúvida: a fácil escapatória em uma fina lâmina de barbear ou o grande estardalhaço envolvendo pólvora, buracos e um circo armado de madrugada.

2 Comments:

Blogger Fernanda Ribeiro said...

É, de fato, parece que todos combinaram apresentar finais extraordinários. Muito bom o crescimento do personagem, como nos persuade de suas angústias e frustrações. Fantástico o final, a dúvida, a conversa consigo mesmo.

16:21  
Blogger Luis Lagarto said...

Como muitos, "been there, almost did that", Capitão.
Grande texto.

23:25  

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