21 julho 2005

Nada

Que todos fossem para o inferno, que se danassem. Por que era tão difícil sair daquele lugar? As pessoas trancavam as passagens, estendiam os braços com seus cigarros, falavam alto, alteradas pelo álcool, gesticulavam. Tentava sair desesperadamente do lugar. O que tinha ido fazer ali afinal? Não sabia explicar, as coisas foram acontecendo de uma forma muito imprevisível, as atitudes que havia tomado não foram calculadas, tudo tinha partido do inevitável. Não foi ali por causa dela, não esperava que ela estivesse ali, não teria como saber, não queria mais encontrá-la, sabia que não poderia vê-la, não ainda. Agora, só queria esquecê-la. Fora ali justamente para isso.

Chegou em casa, sentiu vontade de sair, se divertir, como fazia naqueles tempos em que ainda não a conhecia; iria num daqueles bares de boa música, em que sempre tinha algum amigo, conheceria alguma mulher bonita, tudo como antes. A idéia lhe proporcionou paz, fazia muito tempo que não se sentia assim. Tomou um banho muito quente e muito longo, havia relaxado. Vestiu a camisa preta e a calça jeans de costume, sentiu-se bem, atraente. Iria, finalmente, se entreter e não pensaria, um segundo sequer, nela. Fechou a porta do apartamento, reviu os bolsos, fez o habitual pequeno inventário: chaves, controle da garagem, carteira, cigarros. Caminhou até o elevador, cantarolante até. Enquanto esperava a máquina subir angustiou-se; já não tinha mais certeza se sentia-se bem, pensou em voltar, assistir algum filme, adiantar o serviço, vestir algo mais confortável. Não. Iria sair, teria paz mais uma vez. Suspirou fundo, abriu a porta. Olhou para o espelho. Pode ver o homem que entrava no elevador. Trinta anos, de preto, alto, magro, barba bem feita. Olhos castanhos, muito escuros, suportavam um olhar grave, e nele olheiras enormes – uma expressão cansada. Talvez, quem o visse daria-lhe bem mais de trinta. Não queria pensar nisso, não continuaria vendo o reflexo, não gostava de espelhos, andava de mal com a própria imagem. Vestia roupas escuras justo para que o espelho não lhe surpreendesse, trouxesse uma imagem diferente daquela com a qual se acostumara e que suportava.

Virou-se, então, de frente à porta. O soco da parada inesperada do elevador fez com que a angustia triplicasse. A porta abriu e entrou uma menina, deveria ter uns 17 anos: cabelos lisos e finos, loiros. Por que não tentava impressioná-la, falar algo engraçado, bem humorado, gentil? Não conseguia, não queria. A menina desceu no térreo, pode reparar na sua bunda. Idiota! Por que não tentei? Seguiu descendo, chegou no subsolo, desligou o alarme, entrou no carro, no porta-luvas o rádio, O que escuto? Não, estou indo para uma festa, preciso de algo que me anime. Não sabia escolher, ligou o aparelho na rádio de costume.

Deixou o carro no estacionamento onde já o conheciam, cumprimentavam-lhe, sempre, muito corteses. Foi até o banheiro do estacionamento, lavou o rosto e o enxugou, suspirou fundo. Não pensava nela.

Logo que chegou, sentou em um dos bancos do balcão, o lugar ainda não estava cheio. Pediu uma cerveja e ficou olhando os movimentos do barman, apenas para fixar o olhar para algo. O público da casa foi aumentando, as pessoas já amontoavam-se no balcão, passando bebidas por sobre sua cabeça, espraguejando a inconveniente posição que ele tinha tomado. Não poderia mais ficar ali, teria que levantar, se mover, não tinha vontade. Ânimo, nem para sair dali. Pediu licença para a mulher que lhe expremia, com o braço, na tentativa de alcançar a comanda ao barman. Era muito bonita, pensou em conversar com ela, não sabia como puxar assunto, ficou apenas a olhando. Pode perceber que o namorado havia se aproximado, marcando território, um tapinha em suas costas. No pequeno palco, um trio, guitarra, baixo, bateria. Não gostava destas novas bandas que minavam a cidade. Todas tentavam ser mordazes, com vocalistas viscerais, baixos marcantes. A vocalista era uma bela mulher, prendia sua atenção, “You're too complicated... we should separate it... you're just confiscating... you're exasperating...”. Não agüentava escutar mais nada disso.

Angustia. Não deveria ter saído de casa. Subiu a escada que dava na pequena pista de dança. No fundo, através da parede espelhada, pode vê-la dançando. Um arrepio correu pelo corpo. Havia cortado os cabelos, estavam agora pouco abaixo da boca, as mechas emoldurando o rosto quase retangular, não fosse o queixo fino. Pareciam mais escuros, deveriam estar molhados. Ela fazia movimentos lentos, sensuais, de frente para o espelho. Levantava os braços, unia as mãos, mãos desciam pelo corpo, ela não o via. Braços nus, as panturrilhas torneadas, as mãos na cabeça, cabeça baixa mãos no cabelo, mãos altas, se abaixava, levantava. Nenhum daqueles movimentos faziam sentido, irregulares, desritmados. Era linda a sua dança. Pode ver-se também no espelho, e viu-se como sombra, detalhe quase imperceptível, ao fundo. Imóvel, a observava, perplexo como na primeira vez que a tinha visto. Sentiu medo, lembrou de tudo que aconteceu depois de tê-la conhecido, de todas as noites que passara a procurando, em tantos bares, da obsessividade que ela havia gerado. Obcecado por ela.

Pode escutar o som do trio se infiltrado no música eletrônico da pista, a voz rouca da vocalista, parecia se esforçar: “protect me from what I want... protect me, protect me...”.

Não haviam tido um romance, uma “história” – na verdade, mal a conhecia. Há meses atrás, uma festa, num local bem distante de onde estavam agora, a encontrara. Trocaram apenas algumas frases... Ela, então, havia postado-se a sua frente, dançando, contra o seu corpo. Saíram da festa. Meio alcoolizado, convidou-a para andar de carro pela cidade. Foram até o Guaíba, ele sentiu sono, não poderia mais dirigir. Explicou onde morava, acordou dentro do carro, ocupando o lugar do carona, nenhum vestígio dela.

Riu, achou graça da situação, da perda de tempo. Mas não parou mais de pensar nela, perturbou-se. Passou a imaginá-la acordando ao seu lado na cama; tomando banho juntos; na mesa do café. Passou a imaginar uma vida ao seu lado. Os modos um tanto rudes dela, as roupas, a voz, o cheiro. Passou a desejar-lhe ardentemente. Iniciou a busca, a sair pelos bares, procurando, perguntando por ela. Ela precisava saber.

Queria dizer que estava apaixonado como nunca esteve antes, que não era homem destas coisas, mas ele se sentia assim. Que poderiam casar, ter um quarto só para os cds e os dvds. Enfim, planejariam a casa, a disposição dos móveis. Que ele não queria filhos logo, mas saberia respeitar a decisão dela. Ele precisava encontrá-la. Passou a confundi-la, a vê-la em outras mulheres, sempre assustado, paranóico.

Agora, ela estava mais uma vez a sua frente. Tinha os cabelos diferentes, é verdade, mas só poderia ser ela: braços, pernas, mãos... o modo como dançava. A procurou em tantos lugares, por tanto tempo, ensaiou tantas vezes o que diria e como diria para não parecer o mais completo idiota. Desta vez não a tinha procurado, entendia que deveria exorcizá-la da mente, que era uma besteira, uma doença. Mas não conseguia sair dali, queria, mas não tinha forças, sentia-se acuado.

Aproximou-se para que ela o visse no reflexo do espelho. Pode ver o grande sorriso que se abriu. Andando de costas foi, se juntando a ele, dançando, o via no espelho, mais uma vez, contra seu corpo. Ele não acreditava, precisava de uma prova de que ela era real. Tocou seus braços, desceu aos pulsos, tinha um cordão amarrado, uma pequena estrela, ela levantou os braços, seguindo a lógica desarmônica da sua coreografia, ele ficou com a estrelinha na mão, guardou-a no bolso da camisa.

Estendeu a mão para ela, numa expressão convidativa, ela correspondeu. Levaria ela para um lugar mais tranqüilo, diria tudo aquilo em que pensava todos os dias, explicaria a falta que ela lhe fazia. Sorrindo, ela se afastou, iria ao banheiro, desceu as escadas. Ele ficou contra o corrimão, vendo-a descer, esperando, ansioso. O trio já não estava mais no pequeno palco, a música eletrônica invadira os dois ambientes. Acabou descendo também, pagaria a conta, o caixa era próximo do banheiro – ali a esperaria.

Ela não voltou, o bar fechou. Aguardou, ainda, no cordão da calçada. Em vão.

Sentiu falta da vida que levaram, de acordar ao seu lado, do banho, do café. Sentiu falta das viagens, dos planos, dos amigos que fizeram. Não gostava de fotos, dizia que elas não poderiam reconstituir momentos, não permitia ser fotografada. Ela foi embora sem se despedir, sem explicação, sem deixar indício algum. Não esqueceu uma peça de roupa sequer, uma maquiagem, nada. Apenas o pequeno pingente, a pequena estrela, para qual ele não se cansava de olhar, rememorando tudo o que nunca viveram.

3 Comments:

Blogger Mac said...

Da frustração a esperança em uma noite. Não sei se falo por mim ou pelo texto. Altamente identificável. Uma naturalidade já de praxe.

23:41  
Blogger Luis Lagarto said...

Fernanda -- foi com este texto que foi alçada à categoria de musa circular, posto que até então Luciana Sanches ocupava absoluta.
Eu li seu conto todo quase sem respirar, em total confusão com seu personagem. Vai ver porque esse abandono do final é recorrente na minha história, e eu pude pressenti-lo desde a primeira linha.
A cena dele lavando o rosto... Aquilo sou eu. Quase o tempo todo.
Parabéns é pouco.

23:31  
Blogger Luis Lagarto said...

Por sinal... você já esteve no clube "A Lôca", em São Paulo? É exatamente como o lugar que você descreveu.
Talvez por isso meu "transporte" tenha sido tão intenso...

23:32  

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